Era
Fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, (...) faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, (...) faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta (...)
Então não apanhei no chão o que reluzia. Era ouro, meu Deus. Era ouro, talvez.
Cada vez que eu cumprimentava uma pessoa, dava três giros em torno do próprio corpo. Eu era o próprio rock. Eu era Elvis quando andava e penteava o topete. Eu era alvo de risos, gracinhas, claro. Eu tinha assumido uma maneira de vestir, falar e agir que ninguém conhecia. Claro que eu não tinha consciência da mudança social que o rock implicava. Eu achava que os jovens iam dominar o mundo.
Quando tudo era escuro, quando só existia dor,
quando não havia mais esperança,
quando não se sabia mais nada sobre coisa alguma,
os homens inventaram Deus
- e este pode ter sido o maior acerto.
Então chegou o outro. Primeiro por telefone, que era amigo-de-um-amigo-que-estava-viajando-e-recomendara-que-olhasse-por-ele. Se precisava de alguma coisa, se estava mesmo bem entre aspas. Tão irritante ser lembrado da própria fragilidade no ventre do janeiro tropical, quase expulso do Paraíso que a duras penas conquistara desde sua temporada particular no Inferno, teve o impulso bruto de ser farpado com o outro. A voz do outro. A invasão do outro. A gentil crueldade do outro, que certamente faria parte do outro Lado. Daquela falange dos Cúmplices Complacentes, vezenquando mais odiosa que os Sórdidos Preconceituosos, compreende? Mas havia algo — um matiz? — nessa voz desse outro que o fazia ter nostalgia boa de gargalhar rouco jogando conversa fora com outras pessoas de qualquer lado — que não havia lados, mas lagos, desconfiava vago —, como desde antes daquele agosto desaprendera de fazer. Ah, sentar na mesa de um bar para beber nem que fosse água brahma light cerpa sem álcool (e tão chegado fora aos conhaques) falando bem ou mal de qualquer filme, qualquer livro, qualquer ser, enquanto navios pespontavam a bainha verde do horizonte e rapazes morenos musculosos jogassem eternamente futebol na areia da praia com suas sungas coloridas protegendo crespos pentelhos suados, peludas bolas salgadas. Respirou fundo, lento, sete vezes perdoando o outro. E marcou um encontro.
O meu maior medo já aconteceu, era te perder. E o segundo maior está acontecendo: não conseguir te esquecer.
Eram 110 leões a reinar sobre o trono de pedra
16 dormiram profundamente
E quando acordaram já eram 111 leões a reinar sobre o trono de pedra...
FSBN 221 QBQBT OP USPOP EF QFESP
CFOUP YXJ FOUSPV FN DPNB
F RVBOEP XPMUPV EP DPNB UPSOPV-TF UCN P 222 QBQB
Essas injúrias passavam despercebidas tanto pelo padre como pelo corcunda. Quasímodo era surdo demais e Cláudio pensador demais.
Composição Francesa ( composition française)
Quanto rapazinho Napoleão era muito magro
e oficial de artilharia
mais tarde tornou-se imperador
foi quando ganhou barriga e muitos países
e no dia em que morreu ainda estava
barrigudo
mas só que mais nanico.
Não, não devia pedir mais vida. Por enquanto era perigoso. Ajoelhou-se trêmula junto da cama pois era assim que se rezava e disse baixo, severo, triste, gaguejando sua prece com um pouco de pudor: alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.
Não era à toa que ela entendia os que buscavam caminho. Como buscava arduamente o seu! E como hoje buscava com sofreguidão e aspereza o seu melhor modo de ser, o seu atalho, já que não ousava mais falar em caminho. Agarrava-se ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde ela fosse finalmente ela, isso só em certo momento indeterminado da prece ela sentira. Mas também sabia de uma coisa: quando estivesse mais pronta, passaria de si para os outros, o seu caminho era os outros. Quando pudesse sentir plenamente o outro estaria salvo e pensaria: eis o meu porto de chegada.
Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar no mundo.
Uma vitória louca, uma vitória doente. Não era amor. Aquilo era solidão e loucura, podridão e morte. Não era um caso de amor.
Manter-me concentrada no presente não foi tão difícil como eu pensara. O bosque era parecido com qualquer outra parte da península e Jacob criava um estado de espírito muito diferente.
Ele assobiava animado uma música desconhecida, balançando os braços e andando com facilidade pelo terreno irregular. As sombras não pareciam tão escuras. Não com meu sol particular me fazendo companhia.
- Pronto - disse Jacob, satisfeito. - Sente-se melhor?
Eu era capaz, afinal, de falar com clareza.
- Sim.
- Seus lábios ainda estão azuis - refletiu ele - Quer que eu os aqueça também? É só pedir.
Assim éramos nós obscuradamente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria...
Não sei, até hoje não sei se o príncipe era um deles. Eu não podia saber, ele não falava. E, depois, ele não veio mais.
Minha pureza era linda, Zé, mas ninguém entendia ela, ninguém acolhia ela. Todo mundo só abusava dela. Agora ninguém mais abusa da minha alma, nem do meu coração, pelo simples fato de que eu não tenho mais nada disso. Já era, Zé. É isso que chamam de ser esperto? Nossa, então eu sou uma ninja. Bate aqui no meu peito, Zé? Sentiu o barulho de granito? Quebrou o braço, Zé? Desculpa.
Nota: Trecho da crônica "Zelador".
Desde então, porém, eu havia mudado tanto, quem sabe agora já estava pronta para o verdadeiro era uma vez!
Como eu não sabia o que era, então “não ser” era a minha maior aproximação da verdade: pelo menos eu tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o “não”, tinha o meu oposto. O meu bem eu não sabia qual era, então vivia com algum pré-fervor o que era o meu mal.
A mulher da Era pós moderna
A mulher da Era-pós moderna deve aparecer nos editoriais “completamente desnuda de vulgaridade e totalmente vestida de inteligência”. Sua elegância se fará notar pela suavidade dos adereços. Na boca, um precioso implante de palavras que desviem o furor. Cílios nada postiços, capazes de filtrar o excesso de pó que pulverizam na vida das pessoas e uma lente de contato para enxergar as qualidades do próximo. Nos cabelos, condicionadores que amaciem o afago das mãos que se apressem a moderar, acalmar, abrigar.
A mulher deve se preparar para ser modelo. Só pisar nas passarelas da vida, sob as luzes do flash da simpatia! Para manter a forma, uma dieta diferenciada. Evitar os frutos amargos que se colhem nos canteiros do ressentimento, nunca se afogar numa sopa de mágoa, regada a disse me disse, nem pensar em se viciar na overdose da desgraça alheia.
Toda noite, a mulher pós-moderna tem o cuidado de limpar do rosto as teias da decepção daquele dia e espalhar muita alegria em volta dos olhos, da boca, áreas mais afetadas pela desidratação que a tristeza provoca! A reposição hormonal do amor, da fé, da misericórdia e da compaixão é feita em alta dosagem, porque já se provou cientificamente que o único efeito colateral que provoca é a manifestação de bondade.
A mulher pós-moderna não pode se descuidar de suas mãos. Ela tem nos dedos a aliança de compromisso com a dor alheia. Na bolsa, uma cartela de pílulas da felicidade e também não podem faltar moedas para facilitar o troco: ofensa se troca pelo perdão. Afinal, ela só anda na última moda, moda e mudança são palavras irmãs. Roupa de marca é roupa que marca a sua presença nas rodas sociais, pela discrição e dignidade.
A mulher pós-moderna não é pesada no self-service cultural, como uma salada de frutas: melão, melancia, morango; ela é louvada e reconhecida no jardim da família pelo nome das flores que ajudou a plantar: mulher margarida, mulher rosa, mulher violeta, mulher hortência, mulher-amor-perfeito.
A mulher pós-moderna é embaixadora da paz. É vigilante pertinaz da preservação da vida! A plástica de sua beleza interior não perde a validade. Seu corpo espiritual se reabastece nos mananciais da fé.
“E todos os teus filhos serão ensinados do SENHOR; e a paz de teus filhos será muito grande.” Is 54:13
