Poesia Completa das Borboletas
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Tocado
o coração logo se agita
e arqueja 'Amor'
um peixe alucinado que tenta
tirar seu fôlego da carne do ar
E não há ninguém ali para escutar sua morte
no meio das moitas tristes
por onde o mundo passa em riste
numa efusão de atrasos e de asfalto
Oh era uma primavera
de folhas de peles selvagens e flores de cobalto
enquanto cadillacs caíam como chuva entre as árvores
encharcando com demência os relvados
e de cada nuvem de imitação
escorriam multidões múltiplas
de sobreviventes de nagasaki desasados
E ao longe perdidas
flutuavam xícaras
repletas com nossas cinzas
Em toda a minha vida jamais deitei com a beleza
confidenciando a mim mesmo
seus encantos exuberantes
Jamais deitei com a beleza em toda a minha vida
e tampouco menti junto a ela
confidenciando a mim mesmo
como a beleza jamais morre
mas jaz afastada
entre os aborígenes
da arte
e paira muito acima dos campos de batalha
do amor
15
Correndo risco constante
de absurdo e morte
toda vez que atua em cima
das cabeças da audiência
o poeta sobe pela rima
como um acrobata
para a corda elevada que ele inventa
e equilibrado nos olhares acesos
sobre um mar de rostos
abre em seus passos tIma via
para o outro lado do dia
fazendo além de entrechats
truques variados com os pés
e gestos teatrais da pesada
tudo sem jamais tomar uma
coisa qualquer
pelo que ela possa não ser
Pois ele é o super-realista
que tem de forçosamente notar
a verdade tensa
antes de ensaiar um passo ou postura
no seu avanço pressuposto
para o poleiro ainda mais alto
onde com gravidade a Beleza
espera para dar
seu salto mortal
E ele um pequeno
homem chapliniano
que poderá ou não pegar
aquela forma eterna e bela
projetada no ar
vazio da existência
Aquela "fosforescência sensual
na qual se deliciava minha juventude"
jaz agora quase atrás de mim
como uma região de sonhos
onde um anjo
de hálito ardente
dança como uma diva
por veias estranhas
pelas quais o desejo
perscruta e lamenta
E dança
e dança ainda
e ainda avança
O trem
Para Torquato Neto
às três da madrugada
penso que o trem se esqueceu
de mim
mão gelada
louca disparada
– seria esse o meu fim?
Poema do infinito
tâmaras maduras em teus quadris
corpo em flor de anis
escapa vivo num torso místico:
todo o profano
Aruanda é aqui
nesta cama
os olhos gotejam no balde
a liberdade melancólica da lua
sempre só
num silêncio-móbile
que Patti Smith canta:
você seria uma asa no céu azul
em sua escuridão
finally we are no one
pergunto-me se isso não seria o fim do horizonte
Estrela-do-mar
Para Lis
que espetáculo é a palavra crepúsculo!
labirinto-oceano
estrela cadente que valsa céu abaixo
segredos de água-viva
do navio projeto-me em concha, um par de mãos dadas
vieira-vênus:
(explosão da aurora)
que palavra é estrela senão chuva?
Não sei andar na chuva
muito mais que o tempo, dividir um guarda-chuva
atravessar sem medo, queda longe da parede
pega pela mão, a formiga
na outra, carrega-o
– tempo de costas
alguém disse: não sei andar na chuva
sendo um a menos
estampido são os gritos
no ritmo dos passos
alguém repetiu: eles eram muito felizes
ela, quinze anos
ele, os mesmos quinze
dividiam no guarda-chuva
a mesma tempestade
o riso insolente
o silêncio na xícara de café
beija o inverno delicado
não havia mais ninguém na casa
além do talher empoeirado
ainda da última visita
de um marido morto
a música que faz chorar
hoje só esconderijo
impossível viver numa casa onde não faz calor
frágua que forja lágrimas
onde a chuva não caminha
como dói a paisagem
quando o olho morre aberto
fica no meio um abismo vermelho da saudade
para entrar no sonho
e esperar que aconteça um milagre
Último poema
Nestes lugares desguarnecidos
e ao alto limpos no ar
como as bocas dos túmulos
de que nos serve já polir mais símbolos?
De que nos serve já aos telhados
canelar as águas de gritos
e com eles varrer o céu
(ou com os feixes de luar que devolvemos)?
É ou não o último voo
bíblico da pomba?
Que sem horizonte a esperamos
em nossa arca onde há milénios se acumulam
os ramos podres da esperança.
Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.
há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade
dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
Recado
ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço
As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar
ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada
Acordar tarde
tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte
procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer
irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia
Ofício de amar
Já não necessito de ti
Tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
Tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio
De outras galáxias, e o remorso.....
.....um dia pressenti a música estelar das pedras
abandonei-me ao silencio.....
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas
ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo.
Encrespa
Conte a história que quiser...
mas basta ler o meu cabelo
para saber quem é
a resistência
a voz que clama
a mulher da guerra
a mulher que luta contra tudo e contra todos,
a que sangra e proclama...
a preta de passado incerto,
certamente mal contado!!!
cada fio do meu crespo
para cima
para os lados
para frente
para baixo
para o mundo ...
alisado,
cacheado,
crespo todo
entrançado
na tua frente...
uma história,
uma multidão de ancestralidade...
uma raiz...
um conto
contado erroneamente pela mão branca...
Porque incomoda
ver as pretas
assumirem
sua raiz
na história,
na cultura
na escola,
na tv,
na casa da sogra,
na elite,
na suite,
na boutique
e no seu friz
encrespando poesia na veia da sociedade!!!
Adverso
Em cada verso
Em cada verso
Que escrevo
Você existe
Em cada página
Que viro
Você permanece
Em cada lágrima
Que corre
Você escorre
Em cada sopro
Do vento
Que bate em
Meu rosto
Você se reinventa e
Reescreve
Em cada vírgula
Que para, pausa
Você resiste
Em cada dia
Que apaga
Você afaga em
Lembranças
Em cada soluço
Que tropeço
Você navega
Nas lágrimas
Em cada palavra
Que escrevo
Você finge e corre
Em cada rima
Que descrevo
Você é o fim
Em cada final
Que você existe
Eu fico
Feliz
Escorre
Delicadamente
Em cada dia que amanhece
Assim
Eu adereço
O seu jeito de ser
Em cada tempero
Que eu verso
Você compõe
Em cada perfume
Em que fico
Você se banha
E o passado
Permanece
Inalterável
Como presença
Peço ao tempo imperar
Transmutação
Até virar
Dia pó
Areia
Pós dia
Poeira
Sujeira
De um verso
Do avesso
Exausto
De ser
Execrável
Cafajeste
De rimar
Ordinário
Em cada tormento
Que me afronta
Eu escrevo
Rimo
Componho
Crucificação com
Libertação
Alforriado
Em paz
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
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