Sim nós dois

A obstinação nas disputas é quase sempre efeito do nosso amor-próprio: julgamo-nos humilhados se nos confessamos convencidos.

Lutamos contra os defeitos que nos fazem sofrer a nós mesmos; e afagamos os defeitos que fazem sofrer os outros.

Quanto de nós guardamos nas sombras, com medo do que os outros possam pensar, de julgamentos, de sermos examinados? O que poderia acontecer se nós deixássemos que a luz nos banhasse, expuséssemos nossas vulnerabilidades, permitíssemos familiaridade para subirmos no palco, mesmo que por um breve momento? O que eles veriam?

GRAUS NEGATIVOS

Encontramo-nos numa festa que não gosta de nós. Ao fim, a festa deixa cair a sua máscara e mostra-se tal como é: uma estação de manobras. Colossos gelados estão de pé, sobre os carris, no nevoeiro. Um pedaço de giz riscou as portas da carruagem.

Não se devia mencionar, mas aqui há muita violência reprimida. Por isso os pormenores são tão pesados. E é tão difícil vermos o outro, que também existe: um raio de sol reflectido que se movimenta por cima do muro da casa, que desliza através do bosque ignorado, de rostos cintilantes; uma frase bíblica que nunca se escreveu: "vem até mim, pois eu sou contraditório como tu".

Amanhã trabalharei numa outra cidade. Eu corro para lá, através da madrugada que é um grande cilindro negro e azul. Oríon está pendurada por cima da geada. Crianças num montão de mudez esperam pelo autocarro, crianças pelas quais ninguém reza. A luz cresce, pouco a pouco, como o nosso cabelo.

Se nós invejamos os outros, eles por sua vez nos invejarão: o mal da inveja não conhece limites.

Por mais que falem bem de nós, não nos ensinam nada de novo.

Nossos atos nos determinam, tanto quanto nós determinamos nossos atos.

De nós, velhos, desculpam-se os erros, pois não encontramos as estradas abertas; mas de quem chegou ao mundo depois de nós, pode-se exigir mais; este não pode mais errar nem tentar.

Nós não temos nem a força nem as oportunidades de executar todo o bem e todo o mal que congeminamos.

O amor é essa maravilhosa oportunidade de outro nos amar quando já não nos podemos amar a nós próprios.

Os seres aos quais servimos de amparo são para nós um apoio na vida.

O mal é aquilo que não perdoamos a nós próprios.

Apenas há princípios imortais, visto que, no dia em que um princípio morre, apercebemo-nos de que se tratava simplesmente dum paradoxo.

Ao dizer algo de condensado sobre a realidade, aproximamo-nos já do sonho, ou antes, da poesia.

A razão engana-nos mais frequentemente que a natureza.

Se queres provar-nos que és competente em agricultura, não o proves semeando urtigas.

Os poetas ajudam-nos a amar: só servem para isso.

Somos tão responsáveis por sermos inteligentes como de sermos estúpidos. Não devemos orgulharmo-nos mais de uma coisa do que corar pela outra.

É sempre bom aprendermos, mesmo com os nossos inimigos; raramente é bom arriscarmo-nos a instruir, mesmo os nossos amigos.

A solidão da poesia e do sonho tira-nos da nossa desoladora solidão.