Poesia Toada do Amor de Carlos Drumond
Poesia Matemática
Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.
Ama a simplicidade
Ama a vida
Ama a beleza
Ama a poesia
Ama as coisas que dão alegria
Ama a natureza e a reverência pela vida
Ama os mistérios
Ama Deus.
Pode haver um dia
em que a poesia
mude de endereço
deixe apenas tédio
mas enquanto isso
vem brincar comigo
vamos até onde
possa ser só riso
possa ir tão longe
possa ser tão lindo
pode ser brinquedo
pode ser tão sério
TRAIÇÃO
Hoje,
que as memórias se esvaem
e os amigos fogem de mim,
só tenho minhas poesias
como amigas
confidentes,
mesmo assim,
impertinentes,
sem rima e vazias
não inspiram a menor confiança:
elas também me traem.
Poesia exploratória a você
Quem alisa meus cabelos?
Quem me tira o paletó?
Quem, à noite, antes do sono,
acarinha meu corpo cansado?
Quem cuida da minha roupa?
Quem me vê sempre nos sonhos?
Quem pensa que sou o rei desta pobre criação?
Quem nunca se aborrece de ouvir minha voz?
Quem paga meu cinema, seja de dia ou de noite?
Quem calça meus sapatos e acha meus pés tão lindos?
Eu mesmo.
Explicação de poesia sem ninguém pedir
Um trem de ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.
Rap e poesia... Arte e movimento...
Inspiração, de repente, de momento.
Nossa cultura é rica e sem igual,
Já dei o meu recado, ponto final!
Foi nessa idade que a poesia me veio buscar
Não sei de onde veio
Do inverno, de um rio
Não sei como nem quando
Não, não eram vozes
Não eram palavras
Nem silêncio
Mas da rua fui convocado
Dos galhos da noite
Abruptamente entre outros
Entre fogos violentos
Voltando sozinho
Lá estava eu sem rosto
E fui tocado.
O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.
Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semirreal, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.
Tem gente que pensa que poesia
é coisa que se faz com letras e versos
Mas poesia não se faz com palavras, não.
Poesia a gente escreve com a vida
usando como tinta apenas a alma e o coração.
Falar
A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.
Subversiva
A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.
Um beijo fala mais que mil palavras,
Um toque é bem mais que poesia...
Ninguém sabe explicar o que é o amor
Ninguém vai ser feliz sem ser amado.
Não desconfie. O medo, a dúvida e a suspeita convidam à traição. Cuidado com quem te aconselha a tomar cuidado.
Digno de admiração é aquele que, tendo tropeçado ao dar o primeiro passo, levanta-se e segue em frente.
Soneto do amigo
Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.
É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.
Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.
O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...
Soneto de separação
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Pela luz dos olhos teus
Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.
Dialética
É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Nota: Trecho do poema "Esparsa ao desconcerto do mundo", de Luís de Camões.
