Poesia Toada do Amor de Carlos Drumond
Perdas Necessárias
Deixa partir
O que não te pertence mais
Deixa seguir o que não poderá voltar
Deixa morrer o que a vida já despediu
Abra a porta do quarto e a janela
Que o possível da vida te espera
Vem depressa que a vida precisa continuar
O que foi já não serve é passado
E o futuro ainda está do outro lado
E o presente é o presente que o tempo quer te entregar
Fala pra mim
Se achares que posso ouvir
Chora ao teu Deus se não podes compreender
Rasga este véu do calvário que te envolveu
Tão sublime segredo se esconde
Nesta dor que escurece o horizonte
Que por hora impedem os teus olhos de contemplarem
O eterno presente do tempo
O ausente o presente em segredo
Na sagrada saudade que deixa continuar
Deixa morrer o que a morte já sepultou
Deixa viver o que dela ressuscitou
Não queiras ter o que ainda não pode ser
É possível crescer nesta hora
Mesmo quando o que amamos foi embora
A saudade eterniza a presença de quem se foi
Com o tempo esta dor se aquieta
Se transforma em silêncio que espera
Pelos braços da vida um dia reencontrar.
POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA
I
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
II
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
Não tenho nada que me prove a existência de Deus,
Mas mesmo assim ele continua sendo
O absoluto dos meus dias.
Nunca choveu maná no quintal de minha casa
E a imagem que tenho da Virgem Maria
Nunca derramou uma lágrima.
O que tenho aqui é esta mão machucada,
Este dedo sangrando,
Este nó na garganta,
Este humano desconsolo,
Esta dor,
Esta cor,
E este olhar desconcertante de Deus,
Deixando-me sem jeito,
Ao dizer que me ama.
Vislumbrei um clarão no mistério da sua presença...
...Quando o mistério é muito impressionante, a gente não ousa desobedecer...
É que o perfume denuncia o espírito
Que sob as formas feminis palpita...
Pois como a salamandra em chamas vive,
Entre perfumes a mulher habita.
Soneto de devoção
Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.
Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.
Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.
Essa mulher é um mundo! — uma cadela
Talvez... — mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
Uma coisa é a gente se arrepender do que fez! Outra coisa é a gente se sentir culpado.
Culpas nos paralisam. Arrependimentos não!
Eles nos lançam pra frente, nos ajudam a corrigir os erros cometidos.
- Você tem alguma ideia do quão feliz você me faz sentir? - Ele murmurou.
- Sim… Eu sei exatamente. Porque você faz o mesmo a mim.
A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo
cintila.
O que pode uma boca
esperar
senão outra boca?
Dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca.
Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem.
Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação.
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.
O fingidor
O ermo que tinha dentro do olho do menino era um
defeito de nascença, como ter uma perna mais curta.
Por motivo dessa perna mais curta a infância do
menino mancava.
Ele nunca realizava nada.
Fazia tudo de conta.
Fingia que lata era um navio e viajava de lata.
Fingia que vento era cavalo e corria ventena.
Quando chegou a quadra de fugir de casa, o menino
montava num lagarto e ia pro mato.
Mas logo o lagarto virava pedra.
Acho que o ermo que o menino herdara atrapalhava
as suas viagens.
O menino só atingia o que seu pai chamava de ilusão.
- Meu senhor - respondeu-me um longo verme gordo - nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.
(Dom Casmurro, pg. 36)
É preciso amadurecer a dúvida
Nem sempre a resposta está pronta. Há uma beleza na dúvida que vale a pena de ser apreciada. Forjar a resposta antes do tempo é a mesma coisa que colher frutos verdes...
Demore na dúvida... E descubra a sabedoria que insiste em se esconder na ausência de palavras.
Rancho das flores
Vinicius de Moraes
com música de J.S.Bach
da Cantata 147, Jesus, alegria dos homens
Entre as prendas com que a natureza
Alegrou este mundo onde há tanta tristeza
A beleza das flores realça em primeiro lugar
É um milagre do aroma florido
Mais lindo que todas as graças do céu
E até mesmo do mar
Olhem bem para a rosa
Não há mais formosa
É flor dos amantes
É rosa-mulher
Que em perfume e em nobreza
Vem antes do cravo
E do lírio e da Hortência
E da dália e do bom crisântemo
E até mesmo do puro e gentil malmequer
E reparem no cravo o escravo da rosa
Que é flor mais cheirosa
De enfeite sutil
E no lírio que causa o delírio da rosa
O martírio da alma da rosa
Que é a flor mais vaidosa e mais prosa
Entre as flores do nosso Brasil
Abram alas pra dália garbosa
Da cor mais vistosa
Do grande jardim da existência das flores
Tão cheias de cores gentis
E também para a Hortência inocente
A flor mais contente
No azul do seu corpo macio e feliz
Satisfeita da vida
Vem a margarida
Que é a flor preferida dos que tem paixão
E agora é a vez da papoula vermelha
A que dá tanto mel pras abelhas
E alegra este mundo tão triste
No amor que é o meu coração
E agora que temos o bom crisântemo
Seu nome cantemos em verso e em prosa
Porém que não tem a beleza da rosa
Que uma rosa não é só uma flor
Uma rosa é uma rosa, é uma rosa
É a mulher rescendendo de amor
Deus esteve aqui.
Chegou de manhã cedo,
Quando o sol ainda mostrava seus primeiros raios.
Veio em minha direção.
Não o consegui visualizar bem, os raios de brilho
Que saiam de seu corpo
E seu magnífico sorriso
Deixaram-me hipnotizada a ponto de
Não perceber mais nada.
Minutos depois já estávamos sentados em uma pequena mesa
Sem que eu tivesse lembrança de ter andado.
Estávamos frente a frente.
Ele me confidenciou
Algumas mudanças no percurso da
Minha vida.
Depois me prestigiou com um grande e amoroso aperto de mão,
Levantou-se sorrateiramente e sem que eu percebesse
Foi embora.
Ei fiquei a contemplar sua beleza.
Um ser prefeito.
Eu sou o medo da lucidez.
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas ideias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Um descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.
Contrários
Só quem já provou a dor
Quem sofreu, se amargurou
Viu a cruz e a vida em tons reais
Quem no certo procurou
Mas no errado se perdeu
precisou saber recomeçar
Só quem já perdeu na vida sabe o que é ganhar
Porque encontrou na derrota algum motivo para lutar
E assim viu no outono a primavera
Descobriu que é no conflito que a vida faz crescer
Que o verso tem reverso
Que o direito tem o avesso
Que o de graça tem seu preço
Que a vida tem contrários
E a saudade é um lugar
Que só chega quem amou
E o ódio é uma forma tão estranha de amar
Que o perto tem distâncias
E o esquerdo tem direito
Que a resposta tem pergunta
E o problema, a solução
E o amor começa aqui
No contrário que há em mim
E a sombra só existe quando brilha alguma luz.
Só quem soube duvidar
Pôde enfim acreditar
Viu sem ver e amou sem aprisionar
Quem no pouco se encontrou
Aprendeu multiplicar
Descobriu o dom de eternizar
Só quem perdoou na vida sabe o que é amar
Porque aprendeu que o amor só é amor
Se já provou alguma dor
E assim viu grandeza na miséria
Descobriu que é no limite
Que o amor pode nascer
Nasci para administrar o à-toa, o em vão, o inútil. Pertenço de fazer imagens. Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores, de pessoas com rãs, de pessoas com pedras, etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas. Preciso de obter sabedoria vegetal.(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.
Olhavam-se numa espécie de jogo do siso, com certo ar de majestades rivais e tranquilas, sem arrogância, nem baixeza, como se o mendigo dissesse ao céu:
– Afinal, não me hás de cair em cima.
E o céu:
– Nem tu me hás de escalar.