Milan Kundera
Mesmo nos momentos da mais profunda desordem, é segundo as leis da beleza que, secretamente, o homem vai compondo a sua vida.
A música é libertadora: ela o liberta da solidão e da clausura, da poeira das bibliotecas, e lhe abre no corpo as portas por onde a alma pode sair para confraternizar.
Aquele que quer continuamente “se elevar” deve contar ter vertigem um dia. O que é vertigem? Medo de cair? (...) Vertigem não é medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados.
Nunca podemos saber o que queremos, porque, vivendo apenas uma vida, não podemos nem compará-la com as nossas vidas anteriores, nem aperfeiçoá-la em nossas vidas futuras.
Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.
O sofrimento por ciúme, ao contrário, não evoluía no espaço, girava como uma broca em torno de um ponto único. Nele não havia dispersão. Se a morte da mãe tinha aberto a porta de um futuro (diferente, mais solitário, e também mais adulto), a dor causada pela infidelidade do marido não abria nenhum futuro. Tudo ficava concentrado na única (e imutavelmente presente) visão do corpo infiel, na única (e imutavelmente presente) afronta. Quando ela perdera a mãe, podia escutar música, podia até mesmo ler; quando estava com ciúme, ela não conseguia fazer nada.
Vivia, ela também, na cegueira. Via apenas um ser único, iluminado pelo farol violento do ciúme. E o que aconteceria se esse farol se apagasse bruscamente? Na luz difusa do dia surgiriam outros seres aos milhares, e o homem que até aí ela acreditava ser o único no mundo, se tornaria um entre muitos.
E veio-lhe a ideia repentina de que era o orgulho que o impedira de amar esse país, o orgulho da nobreza, da grandeza de alma, da delicadeza; um orgulho insensato que fazia com que ele não amasse seus semelhantes, que os detestasse, porque via neles assassinos. [...]
E pensou ainda que aquilo de que não gostava nos outros era alguma coisa de gratuito, aquilo com o que vinham ao mundo e que carregavam consigo como uma grade pesada. E sentiu que não tinha nenhum direito privilegiado à grandeza de alma e que a suprema grandeza de alma era amar os homens mesmo que fossem assassinos.
Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que leva a vida a parecer sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa, pois um esboço é sempre o projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.
Conceber o diabo como um partidário do Mal e o anjo como um combatente do Bem é aceitar a demagogia dos anjos. As coisas são, evidentemente, mais complicadas.
Os anjos são partidários, não do Bem, mas da criação divina. O diabo, ao contrário, é aquele que recusa ao mundo divino um sentido racional.
O domínio do mundo, como se sabe, é dividido entre anjos e demônios. Contudo, o bem do mundo não implica que os anjos levem vantagem sobre os demônios (como eu pensava quando era criança), e sim que o poder de uns e de outros seja mais ou menos equilibrado. Se existe no mundo muito sentido indiscutível (o poder dos anjos), o homem sucumbe sob o seu peso. Se o mundo perde todo o seu sentido (reino dos demônios), também não se pode viver.
Numa sociedade rica, os homens não têm necessidade de trabalhar com as mãos e se dedicam a uma atividade intelectual. Existem cada vez mais universidades e cada vez mais estudantes.
O amor é o desejo dessa metade perdida de nós mesmos.
Que a vida seja uma armadilha, isso sempre soubemos: nascemos sem ter pedido, presos a um corpo que não escolhemos e destinados a morrer.
Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que leva a vida a parecer sempre um esboço.
O futuro nada mais é do que um vazio indiferente que não interessa a ninguém, mas o passado é cheio de vida e seu rosto irrita, revolta, fere, a ponto de querermos destruí-lo ou pintá-lo de novo.
Não devemos nunca aceitar que o futuro se curve sob o peso da memória.
O amor é uma interrogação contínua. É, não conheço definição melhor do amor.
O homem é responsável pela própria ignorância.
Nunca se pode saber o que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores.
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