Textos de Fernando Pessoa

Cerca de 312 textos de Fernando Pessoa

todos os dias que passam
sem passares por aqui
são dias que me desgraçam
por me privarem de ti

tem um livrinho onde escrevo
qdo me esqueço de ti
é um livro de capa preta
onde inda nada escrevi

o canário ja nao canta
não canta o canario já
aquilo que em ti me encanta
talvez nao me encantará

I say to you: do good. Why? What do you gain by it? Nothing, you gain nothing. Neither money, nor love, nor respect, nor perhaps peace of mind. Perhaps thou gainest none of these. Why then do I say: do good? Because you gain nothing by it. It is worth doing for this.

Digo-vos: praticai o bem. Porquê? O que ganhais com isso? Nada, não ganhais nada. Nem dinheiro, nem amor, nem respeito, nem talvez paz de espírito. Talvez não ganheis nada disso. Então por que
vos digo: Praticai o bem? Porque não ganhais nada com isso. Vale a pena praticá-lo por isto mesmo.

Nunca supus que isto que chamam morte
Tivesse qualquer espécie de sentido...
Cada um de nós, aqui aparecido,
Onde manda a lei e a falsa sorte,

Tem só uma demora de passagem
Entre um comboio e outro, entroncamento
Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
Mas, seja como for, segue a viagem.

Passei, embora num comboio expresso
Seguisses, e adiante do em que vou;
No términus de tudo, ao fim lá estou
Nessa ida que afinal é um regresso.

Porque na enorme gare onde Deus manda
Grandes acolhimentos se darão
Para cada prolixo coração
Que com seu próprio ser vive em demanda.

Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Há almas pares, as que conheceram
Onde os seres são almas.

Como éramos só um, falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes [...] calma,
Sei que, falho de ti, estou um a sós.

É como se esperasse eternamente
A tua vida certa e conhecida
Aí em baixo, no café Arcada —
Quase no extremo deste [...]

Aí onde escreveste aqueles versos
Do trapézio, doriu-nos [...]
Aquilo tudo que dizes no «Orpheu».

Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais.

[...]

Não mais, não mais, e desde que saíste
Desta prisão fechada que é o mundo,
Meu coração é inerte e infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.

Porque há em nós, por mais que consigamos
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
Um desejo de termos companhia —
O amigo como esse que a falar amamos.

“Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é”.

( Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.)

Mas eu não tenho problemas; tenho só mistérios.

Todos choram as minhas lágrimas, porque as minhas lágrimas são todos.
Todos sofrem no meu coração, porque o meu coração é tudo.

( Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.)

Abram-me todas as portas!
Por força que hei de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!

Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, ás vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vomito para aliviar a vontade de vomitar.
Um dos meus passeios predilectos, nas manhãs em que temo a banalidade do dia que vai seguir como quem teme a cadeia, é o de seguir lentamente pelas ruas fora, antes da abertura das lojas e dos armazéns, e ouvir os farrapos de frases que os grupos de raparigas, de rapazes, e de uns com outras, deixam cair, como esmolas da ironia, na escola invisível da minha meditação aberta.
E é sempre a mesma sucessão das mesmas frases... «E então ela disse...» e o tom diz da intriga dela. «Se não foi ele, foste tu...» e a voz que responde ergue-se no protesto que já não oiço. «Disseste, sim senhor, disseste...» e a voz da costureira afirma estridentemente «minha mãe diz que não quer...» «Eu?» e o pasmo do rapaz que traz o lanche embrulhado em papel-manteiga não me convence, nem deve convencer a loura suja. «Se calhar era...» e o riso de três das quatro raparigas cerca do meu ouvido a obscenidade que (...) «E então pus-me mesmo dia nte do gajo, e ali mesmo na cara dele — na cara dele, hem, ó Zé...» e o pobre diabo mente, pois o chefe do escritório — sei pela voz que o outro contendor era chefe do escritório que desconheço — não lhe recebeu na arena entre as secretárias o gesto de gladiador de palhinhas [?] «... E então eu fui fumar para a retrete...» ri o pequeno de fundilhos escuros.
Outros, que passam sós ou juntos, não falam, ou falam e eu não oiço, mas as vozes todas são-me claras por uma transparência intuitiva e rota. Não ouso dizer — não ouso dizê-lo a mim mesmo em escrita, ainda que logo o cortasse — o que tenho visto nos olhares casuais, na sua direcção involuntária e baixa, nos seus atravessamentos sujos. Não ouso porque, quando se provoca o vómito, é preciso provocar um.
«O gajo estava tão grosso que nem via a escada.» Ergo a cabeça. Este rapazote, ao menos descreve. E esta gente quando descreve é melhor do que quando sente, porque por descrever esquece-se de si. Passa-me a náusea. Vejo o gajo. Vejo-o fotograficamente. Até o calão inocente me anima. Bendito ar que me dá na fronte — o gajo tão grosso que nem via que era de degraus a escada — talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos, apalpando-se e atropelando-se na falsidade regrada do declive aquém do saguão.
A intriga a maledicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente da própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, a horrorosa ignorância da inimportância do que são... Tudo isto me produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no involuntário dos sonhos, das côdeas húmidas dos desenhos, dos restos trincados das sensações.

⁠⁠⁠⁠Há dias de tanta angústia
Que não sei do que ela é.
Não sei se me sobra o sonho.
Não sei se me falta a Fé.

É uma angústia que nasce,
Como de um solo, de mim,
Que parece ser eu todo
Com razão de ser assim.

E esmaga-me toda a alma,
Confunde todo o meu ser
E tudo gira em meu torno
Sem eu o compreender.

Mágoa como um portão velho,
Ferrugem da quinta em fim,
É uma angústia que cai,
Como num solo, por mim…

Hora absurda

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida pela maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... a Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-Outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lado aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Porque não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há-de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave. como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

Fernando Pessoa
Poesias. Lisboa: Ática, 1942.

Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos. ou heras. ou rosas volúveis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta a flor como a ele
De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto ás horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.

Fernando Pessoa
PESSOA, F. Odes de Ricardo Reis. Lisboa: Ática. 1946 (imp.1994). P. 32
Inserida por pensador

Nunca Aprendi a ExistirTenho as opiniões desmentidas, as crenças mais diversas - É que nunca penso nem falo nem ajo... Pensa, fala, age por mim sempre um sonho qualquer meu em que me encarno no momento.
Vem a fala e falo-eu-outro. De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo o que é a vida. Não sei os gestos a acto nenhum real.
Nunca aprendi a existir.

Fernando Pessoa, 'Inéditos'

Inserida por Nickdim

Dorme sobre o meu seio.
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser
O espaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...

No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.

Fernando Pessoa
PESSOA, F. Poesias. Lisboa: Ática. 1942 (15ª ed. 1995). p. 103
Inserida por pensador

Quando passo o dia inteiro
sem ver o meu amorzinho
corre um frio de janeiro
no junho do meu carinho

Teus olhos tristes parados
coisa nenhuma a fitar
ah meu amor,meu amor
se eu fora nenhum lugar

Adivinhei o que pensas
só por saber que não era
qualquer das coisas imensas
que a minha alma de ti espera

Inserida por cilamar

"A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.
Por isso...
Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens."

Inserida por katiacristinaamaro

Assim, sem nada feito e o por fazer

Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.

Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.

Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.

Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.

Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!

Inserida por maisaalana

Ora até que enfim..., perfeitamente...

Ora até que enfim..., perfeitamente...
Cá está ela!
Tenho a loucura exatamente na cabeça.
Meu coração estourou como uma bomba de pataco,
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...

Graças a Deus que estou doido!
Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
E, como cuspo atirado ao vento,
Me dispersou pela cara livre!
Que tudo quanto fui se me atou aos pés,
Como a sarapilheira para embrulhar coisa nenhuma!
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta
E me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!

Graças a Deus, porque, como na bebedeira,
Isto é uma solução.
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago!
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!

Poesia transcendental, já a fiz também!
Grandes raptos líricos, também já por cá passaram!
A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto resolvido em vários —
Também não é novidade.
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida...

Inserida por Marialins

VI

Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.

Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...

Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distância de mim vi...
Eu próprio sou aquilo que perdi...

E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glória marginal
Os girassóis do império que morri...

Fernando Pessoa
PESSOA, F. Passos da Cruz in Poesias. Lisboa: Ática. 1942 (15ª ed. 1995). p. 43
Inserida por pensador

Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tange e range, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.

Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho inerte.

As tuas mãos são rolas presas.

Os teus lábios são rolas mudas.

(que aos meus olhos vêm arrulhar)

Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente.

E toda ranger de asas, como dos (...), a lagoa de eu te ver. Tu és toda alada, toda (...)

Chove, chove, chove...

Chove constantemente, gemedoramente (...)

Meu corpo treme-me a alma de frio... Não um frio que há no espaço, mas um frio que há em vir a chuva...

Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.

Fernando Pessoa
PESSOA, F. Livro do Desassossego. Vol I. Coimbra: Presença. 1990. p. 128
Inserida por pensador

Abat-Jour

A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.

Bem sei... Era dia
E longe de aqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!

E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...

Inserida por MERRAH

Fernando Pessoa
Cancioneiro

Tomamos a Vila depois de um Intenso Bombardeamento

A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que bóiam nas banheiras —
À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...

E o da criança loura?

Inserida por MERRAH

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