Poesias de Carlos Drummond de Andrade

A noite dissolve os homens

A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança… Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo…
O mundo não tem remédio…
Os suicidas tinham razão.

Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio…
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.

Visão de Clarice Lispector

Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.

A PALAVRA MÁGICA

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra


*Carlos Drummond de Andrade

Postado por Di..Resende

Temos o direito constitucional...
...de escarnecer,...
...de ridicularizar,...
...de esclarecer,...
...de cultivar inimigos...
...e influenciar pessoas.

"Muitas coisas se dizem, que não deviam ser ditas; muitas outras se calam, que não mereciam calar-se.
As palavras são as mesmas, em um e outro caso; só a conveniência delas, na circunstância, é que varia.
E na variação, fica o dito por não dito.
A menos que o convicto (ou o teimoso) diga: “Digo e repito”.

(Carlos Drummond de Andrade, no livro “Os dias lindos”. São Paulo: Companhia das Letras, 2013)

O OUTRO

Como decifrar pictogramas de há dez mil anos
se nem sei decifrar
minha escrita interior?

Interrogo signos dúbios
e suas variações calidoscópicas
a cada segundo de observação.

A verdade essencial
é o desconhecido que me habita
e a cada amanhecer me dá um soco.

Por ele sou também observado
com ironia, desprezo, incompreensão.
E assim vivemos, se ao confronto se chama viver,
unidos, impossibilitados de desligamento,
acomodados, adversos,
roídos de infernal curiosidade.

O dia dos Namorados
para mim é todo dia.
Não tenho dias marcados
para te amar noite e dia.

O dia 12 de junho,
como qualquer outro, diz
(e disso dou testemunho)
que contigo sou feliz.

O ano passado

O ano passado não passou,
continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.

As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.

Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.

E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.

Carlos Drummond de Andrade
Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova. Aguilar, 2002.

⁠Órion

A primeira namorada, tão alta
Que o beijo não alcançava,
O pescoço não alcançava,
Nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.
Luzia na janela do sobrado.

Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
[...]
Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa.
[...]
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta.

INOCENTES DO LEBLON

Os inocentes do Leblon não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe emigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

Inserida por tomazdeaquino

O animal não aprende nossas virtudes, se as tivermos, porém adquire nossos vícios.

O animal costuma compreender mais e melhor a nossa linguagem do que nós a deles.

Não se sabe por que os irracionais falam tão pouco, e os racionais tanto.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.
Inserida por Filigranas

"Você não pode desistir até que tente
Você não pode viver até que morra
Você não pode aprender a contar a verdade
Até que aprenda a mentir"

Inserida por Kiesza

Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te,
mas curioso:
já não estás, e te sinto,
E tanto me falas, e te converso.
E tanto nos entendemos, no escuro,
no pó, no sono.

Carlos Drummond de Andrade
A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Nota: Trecho do poema Como um presente.

...Mais
Inserida por katiacristinaamaro

Não morres satisfeito.
A vida te viveu
Sem que vivesses nela.
E não te convenceu
Nem deu qualquer motivo
Para haver o ser vivo.

A vida te venceu
Em luta desigual.
Era todo o passado
Presente presidente
Na polpa do futuro
Acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
Não morres conformado.

Nem morres informado
Dos termos da sentença
Da tua morte, lida
Antes de redigida.
Deram-te um defensor
Cego surdo estrangeiro
Que ora metia medo
Ora extorquia amor.

Nem sabes se és culpado
De não ter culpa. Sabes
Que morre todo o tempo
No ensaiar errado
Que vai a cada instante
Desensinado a morte
Quanto mais a soletras,
Sem que, nascido, mores
Onde, vivendo, morres.

Inserida por Binha2309

Evocação

À sombra da usina, teu jardim
Era mínimo, sem flores.
Plantas nasciam, renasciam
para não serem olhadas.

Meros projetos de existência,
desligavam-se de sol e água,
mesmo daquela secreção
que em teus olhos se represava.

Ninguém te viu quando, curvada,
removias o caracol
da via estreita das formigas,
nem sequer se ouviu teu chamado.

Pois chamaste (já era tarde)
e a voz da usina amorteceu
tua fuga para o sem-país
e o sem tempo. Mas te recordo

e te alcanço viva, menina,
a planejar tão cedo o jardim
onde estás, eu sei, clausurada,
sem que ninguém, ninguém te adivinhe.

Inserida por Binha2309

A folha

A natureza são duas.
Uma,
tal qual se sabe a si mesma.
Outra, a que vemos. Mas vemos?
Ou  a ilusão das coisas?

Quem sou eu para sentir
o leque de uma palmeira?
Quem sou, para ser senhor
de uma fechada, sagrada
arca de vidas autônomas?

A pretensão de ser homem
e não coisa ou caracol
esfacela-me em frente  folha
que cai, depois de viver
intensa, caladamente,
e por ordem do Prefeito
vai sumir na varredura
mas continua em outra folha
alheia a meu privilégio
de ser mais forte que as folhas.

Inserida por Mary-25Silver

A administração, organismo autoritário,
é feita de papel, isto é, de figuração de coisas.
(In: O Avesso das Coisas - 6º Edição, 2007.)

Inserida por portalraizes

Ambição
A ambição torna os homens audazes;
a audácia sem ambição é privilégio de poucos.
- Carlos Drummond de Andrade, In: O Avesso das Coisas - 6º Edição, 2007.

Inserida por portalraizes

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! Ser ‘gauche’ na vida.

(Do poema "Sete Faces"/in: Alguma Poesia, 1930.)

Inserida por portalraizes