Momentos Alegria Fernando Pessoa
Eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas.
O que é que você quer?
Ela sorriu. Estendeu as mãos, tocou-o também. Vontade de pedir silêncio. Porque não seria necessária mais nenhuma palavra um segundo antes ou depois de dizerem ao mesmo tempo:
- Quero ficar com você.
Dei conselhos a ele, disse que admitia que cada um fizesse o que bem entendesse, mas que devia-se resguardar um limite de decência, de respeito pelo outro e por si próprio, que se deve ter uma diretriz na vida, senão fica tudo vazio, sem sentido.
E no momento — como dizer? — de certa forma eu estou gostando de estar me sentindo assim, desamparado. Porque é como um teste. Agora eu quero ver como eu me viro, entende? E sozinho.
Mas estou disposto a correr o risco. É preciso agora concretizar a ideia. Tirá-la dos limites do pensamento, arrancá-la apenas do papel e torná-la um pedaço de mim.
Então, admitiu o medo. E admitindo o medo permitia-se uma grande liberdade: sim, podia fazer qualquer coisa, o próximo gesto teria o medo dentro dele e portanto seria um gesto inseguro, não precisava temer, pois antes de fazê-lo já se sabia temendo-o, já se sabia perdendo-se dentro dele finalmente, podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela.
Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar.
Ele abriu os olhos. E acolheu todos os sentimentos, mesmo o medo. Não queria ficar só. Virou o rosto contra o travesseiro, sentindo o contato com a fronha limpa. As lágrimas molhavam o pano, mas eram um consolo. As paredes não riam mais. Um sentimento novo encolhia-se dentro dele, em atitude de espera. Não sabia dar-lhe nome, mas isso não era essencial. O essencial que estava dentro dele, o novo sentimento — quente, amável — como se apontasse um caminho com o dedo em riste.
Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo — nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”, feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.
Lembro como era bom compartilhar minha felicidade com os amigos, falar pelos cotovelos sobre alegrias que soavam até ofensivas àqueles que não entendiam o que se passava no interior de um corpo em festa. Eu costumava ser uma alegoria ambulante. Agora a festa terminou, os copos estão espalhados pelo chão, os pratos sujos, silêncio absoluto, ficou o vazio devorador de uma solidão impossível de ser contada.
Achei que eu ia ser esperta pra sempre, mas para a minha grande alegria estou me sentindo uma idiota. Sabe o que eu fiz hoje? As pazes com o Bob Marley, com o Bob Dylan e até com o ovomaltine do Bob’s. As pazes com os casais que se balançam abraçados enquanto não esperam nada, as pazes com as pessoas que não sabem ver o que eu vejo.
A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida – e se parece com o início de uma perdição irrecuperável.
É curioso, a alegria não é um sentimento nem uma atmosfera de vida nada criadora. Eu só sei criar na dor e na tristeza, mesmo que as coisas que resultem sejam alegres. Não me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu não deprimo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo num movimento de equilibrio infecundo do qual estou tentando me libertar. O paradigma máximo para mim seria: a calma no seio da paixão. Mas realmente não sei se é um ideal humanamente atingível.
O mundo inteiro se enfeita neste dia, por toda a parte só há risos e alegria! A satisfação de familiares e amigos não é mais do que o reflexo do que há nesta união: felicidade completa e perfeita harmonia.
Que seja preciso mais que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito, e que o teu silêncio me fale cada vez
que ninguém atende complicar, porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer, porque metade de mim é platéia e a outra metade é canção. Que minha loucura seja perdoada, porque metade de mim é amor e a outra.. também.
Nota: A autoria do texto tem vindo a ser erroneamente atribuída a Ferreira Gullar. Trecho do poema "Metade".
...MaisOS MORTOS SOBEM AS ESCADAS
Os mortos sobem as escadas,
sorrindo com seus claros dentes.
Alegrias que nunca tiveram
quando eram vivos e presentes,
felicidades que apenas sonharam
e foram lágrimas somente.
Os mortos sobem as escadas:
inesperados visitantes
vindos dos reinos sem fronteiras
às nossas casas, dessemelhantes.
Ai, bem se vê que não estão vendo
que um vivo é um morto mais distante!
