Luto Morte

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Peste, fome e guerra, morte e amor, a vida de Tereza Batista é uma história de cordel.

Jorge Amado
Tereza Batista, cansada de guerra

Prefiro um amor lento no início para ensaiar a velhice do que um amor rápido para treinar sua morte.

Se a morte deve levar-me, então que seja com toda força, numa curva, porque vejo me mal acabar a minha vida numa cadeira de rodas.

É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte.

Caetano Veloso

Nota: Trecho da música "Divino Maravilhoso", composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil

O homem, carnívoro, também é coveiro. A nossa existência é feita de morte. Tal é a lei terrífica. Somos sepulcro.

Os homens receiam a morte pela mesma razão por que as crianças têm medo das trevas: porque não sabem do que se trata.

Francis Bacon
BACON, F., Essays, 1625

Para onde quer que me volte,
Só vejo a imagem da morte.

Tanto faz a vida como a morte
O pior de tudo eu já passei...

Fora de Jesus Cristo não sabemos o que é nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos.

"- A morte é cruel. Digladia com intelectuais e os torna meninos. Debate com ateus e os transforma em tímidas crianças. Guerreia contra generais e os torna frágeis combatentes. Batalha com milionários e os sepulta na lama da miserabilidade. Duela contra celebridades e as faz beijar a lona da insignificância. A vida sempre nos dá outras oportunidades, a morte nunca."

Morte do Leiteiro

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.

Carta sobre a Felicidade (a Meneceu)

Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude. Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. E estou precisando de minha própria força. Sou forte mas também destrutiva. Autodestrutiva. E quem é autodestrutivo também destrói os outros. Estou ferindo muita gente. E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele. Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. Ou talvez os que menos merecem precisem mais. Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais.

Clarice Lispector
Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

Nota: Crônica Deus.

...Mais

Vivo era uma peste morrendo serei tua morte.

O que separa a alma do corpo não é a morte, é a vida.

Tu não tens poder sobre o tempo que vive, nem sobre a hora de tua morte. Tu só tens poder sobre o que tu podes viver exatamente agora.

A paga do pecado é a morte.

Traz sempre diante dos olhos a morte, desterros e tudo que se tem por trabalho, e mais que tudo a morte. E com isto nem terás nenhum pensamento baixo, nem desejarás nada com muita força.

Não precisamos temer os deuses. não precisamos nos preocupar com a morte. É fácil alcançar o bem. É fácil suportar o que nos amedronta.

O CONTRÁRIO DA MORTE

Acabei de ler Milagre nos Andes, o relato impressionante de Nando Parrado, um dos sobreviventes daquele célebre acidente aéreo que aconteceu trinta anos atrás e que deixou vários jovens uruguaios perdidos no meio da cordilheira, sem comida, sem comunicação, sob temperaturas gélidas e tendo que se alimentar da carne dos colegas mortos. Agora um deles conta em detalhes como foram aqueles 72 dias de luta pela vida, num livro que se lê fácil como se fosse uma reportagem e que faz a gente se perguntar: do que, afinal, tanto reclamamos, se temos água, pão, cobertor e afeto?
Afeto, na verdade, é uma palavra soft, amor é mais contundente. Nando Parrado se propôs a mostrar que, se a morte tem um oponente, não é a vida, é o amor. É a única coisa que pode fazer alguma diferença diante da magnitude da morte, da onipresença da morte, da longevidade da morte: sim, porque a morte, a partir do momento que ocorre, passa a ter um período de duração infinito, e antes de virmos ao mundo ela também já existia nessa mesma infinitude de trás pra frente. Onde estávamos antes de nascer? De certa forma, mortos também. Nossa vida é apenas uma pequena brecha de tempo entre duas ausências acachapantes. E para justificar esse breve intervalo de vida e enfrentar a soberania da morte, só mesmo amando.
Tem se falado pouco de amor, virou uma coisa meio piegas, antiga. Hoje cultua-se muito mais a paixão e demais sentimentos vulcânicos, aqueles que fazem barulho, que inspiram loucuras, que causam polêmicas, que atormentam, que dilaceram, que fazem as pessoas se sentirem, ora, vivas. O filósofo romeno Cioran disse que é melhor viver em frenesi do que na neutralidade, e tem razão, vigor é algo de que não podemos abrir mão.
A questão é que nada é mais vigoroso que o amor, esse sentimento que erroneamente relacionamos com comodidade e mornidão, tudo porque associamos amor ao casamento: esse sim pode vir a se tornar algo acomodado e morno. O amor pega essa carona injustamente.
Amor não é apenas o que aproxima um homem e uma mulher (ou dois homens ou duas mulheres). Amor envolve pais e filhos, envolve amigos, envolve uma predisposição emocional para o trabalho, para o esporte, para a gastronomia, para a arte, para a religião, para a natureza, para o autoconhecimento. Amor é um estado de espírito que nos move constantemente, é uma energia que não se esgota, é a única coisa que faz a gente levantar de manhã todos os dias sem entregar-se para o automatismo, é o que dá algum sentido para este hiato entre duas mortes. Isto não é vulcânico? Ô. Parece sermão de padre, parece texto de romancezinho barato, parece muito piegas, sim, mas e daí? Nando Parrado só conseguiu sair do meio da neve e do nada porque pensava dia e noite na dor que seu pai estaria sentindo. Outros sobreviventes só conseguiram suportar o frio, a fome e o desespero porque tinham quem esperasse por eles do outro lado da cordilheira. Tiveram sorte, coragem e inteligência para transpor os obstáculos, e venceram, mas o próprio Nando admite: não houvesse um sentimento, pouco adiantaria.
Nós, com nossos obstáculos infinitamente mais transponíveis do que a cordilheira, deveríamos experimentar mais deste viagra motivacional chamado amor. E azar se parecermos cafonas.

Martha Medeiros
MEDEIROS, M. Doidas e Santas. Porto Alegre: L&PM, 2008.