Epígrafes de Rubem Alves
Compreende-se que o que as pessoas têm normalmente em suas cabeças não seja
conhecimento, não seja ciência, mas pura ideologia, fumaças, secreções, reflexos de um
mundo absurdo.
E é aqui que aparece a religião, em parte para iluminar os cantos escuros do
conhecimento. Mas, pobre dela. . . Ela mesma não vê. Como pretende iluminar?
Ilumina com ilusões que consolam os fracos e legitimações que consolidam os fortes.
E, desta forma, as palavras que brotam do sofrimento se transformam,
elas mesmas, no bálsamo provisório para uma dor que ele é impotente para
curar. E é por isto que é ópio, "felicidade ilusória do povo", que deve
ser abolida como condição de sua verdadeira felicidade. Mas o
abandono das ilusões não se consegue por meio de uma atividade
intelectual. As pessoas não podem ser convencidas a abandonar suas
ideias religiosas. Ideias são ecos, fumaça, sintomas... Se elas têm tais ideias
é porque a sua situação as exige. É necessário, então, que sua situação seja
mudada, as fendas curadas, para
que as ilusões desapareçam.
Deus é este coração fictício que o desejo inventou, para
tornar o universo humano e amigo. E então a própria morte perdeu o seu caráter
ameaçador. As religiões são, assim, ilusões que tornam a vida mais suave. Narcóticos.
Como diria Marx: o ópio do povo.
Mas, não é verdade que toda sociedade tem uma classe dominante e uma classe
dominada? Uma classe que pode e outra que não pode? Uma classe forte e uma classe
fraca? Até mesmo as crianças e velhos sabem disto — especialmente as crianças e
velhos. E também os migrantes, e os camponeses assolados pela seca, e os doentes que
morrem sem atendimento médico. . . e assim por diante. E a conclusão que se segue,
necessariamente, é que os sonhos dos poderosos têm de ser diferentes dos sonhos
dos oprimidos. E também suas religiões. ..
"Penso que borboletas, seres alados, diáfanos e coloridos, devem ser emissários dos deuses, anjos que anunciam coisas do amor. Imaginei então que aquela borboleta era um anjo disfarçado que os deuses me enviavam com uma promessa de felicidade."
Gosto de ler orações. Orações e poemas são a mesma coisa: palavras que se pronunciam a partir do silêncio, pedindo que o silêncio nos fale. A se acreditar em Ricardo Reis, é no silêncio que existe no intervalo das palavras que se ouve a voz de “um Ser qualquer, alheio a nós“, que nos fala. O nome do Ser? Não importa. Todos os nomes são metáforas para o Grande Mistério inominável que nos envolve. Gosto de ler orações porque elas dizem as palavras que eu gostaria de ter dito mas não consegui. As orações põem música no meu silêncio.
O ato de ouvir exige humildade de quem ouve. E a humildade está nisso: saber, não com a cabeça mas com o coração, que é possível que o outro veja mundos que nós não vemos. Mas isso, admitir que o outro vê coisas que nós não vemos, implica reconhecer que somos meio cegos… Vemos pouco, vemos torto, vemos errado.
Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta bonito... A arte de amar e a arte de ouvir estão intimamente ligadas. Não é possível amar uma pessoa que não sabe ouvir.
Amar é brincar. Não leva a nada. Porque não é para levar a nada. Quem brinca já chegou.
Há momentos efêmeros que justificam toda uma vida.
A ostra, para fazer uma pérola, precisa ter dentro de si um grão de areia que a faça sofrer.
"Mas o que me assombra mais não são as coisas que os seres humanos fazem. São os pensamentos que eles pensam."
O que realmente importa:
A vida não é uma sonata que, para realizar a sua beleza, tem de ser tocada até o fim. Dei-me conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de minissonatas. Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amor justifica a vida inteira. Tenho terror de ser enganado. Se estiver para morrer, que me digam. Se me disserem que ainda me restam dez anos, continuarei a ser tolo, mosca agitada na teia das medíocres, mesquinhas rotinas do cotidiano. Mas se só me restam seis meses, então tudo se torna repentinamente puro e luminoso. Os não essenciais se despregam do corpo, como escamas inúteis. A Morte me informa sobre o que realmente importa.
(Do universo à jabuticaba)
Nos quarenta anos em que peregrinou pelo deserto, o povo de Israel, segundo conta a estória, foi alimentado por um alimento que caía dos céus durante a noite. As pessoas tinham permissão para colher desse alimento, o maná, na medida de suas necessidades. Só para o dia. Alguns, com medo de que o maná não caísse no dia seguinte, colheram em dobro, por via das dúvidas... Mas, quando foram comer o maná poupado, viram que ele estava apodrecido, cheio de bichos. Talvez isso queira dizer que a vida há de ser colhida diariamente. Quem deseja economizar o hoje para o amanhã fica com a vida apodrecida nas mãos.
Quanto maior a beleza, maior também a tristeza. A beleza em solidão é sempre triste. Beleza solitária dá vontade de chorar. Para ser boa, a beleza exige, pelo menos, dois pares de olhos tranquilos se olhando, dois pares de mãos amigas brincando, e bocas de voz mansa sussurrando.
A Morte a única conselheira que temos:
"Odeio a ideia de morte repentina, embora todos achem que é a melhor. Discordo. Tremo ao pensar que o jaguar negro possa estar à espreita na próxima esquina. Não quero que seja súbita. Quero tempo para escrever o meu haicai. O último haicai é isto: o esforço supremo para dizer a beleza simples da vida que se vai. Como dizia o bruxo D. Juan ao seu aprendiz: “A morte é a única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir que tudo vai de mal a pior e que você está a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e pergunte-lhe se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa fora do seu toque... Sua Morte o encarará e lhe dirá: ‘Ainda não o toquei’”. E o feiticeiro concluiu: “Um de nós tem de mudar, e rápido. Um de nós tem de aprender que a Morte é caçadora, e está sempre à nossa esquerda. Um de nós tem de aceitar o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que acompanha os homens que vivem suas vidas como se a Morte não os fosse tocar nunca”.
“Não vou aceitar o brinde porque não há brindes. O peixe, ao olhar para a isca, pensa: ‘Oh! Um brinde do pescador...’. Quando eu era jovem, tentei ganhar a vida como vendedor de livros. Fracassei, mas aprendi a sedução dos brindes. Não vou aceitar o brinde porque sei aonde ele me levará: serei fisgado pelo anzol e ficarei odiando você e eu mesmo pelo brinde, nas inúmeras prestações que terei de pagar. Falo isso por experiência própria.”
Brinquei com ela: “Você está ganhando a sua vida e enganando a vida dos outros. Mas não se envergonhe. Todo mundo engana. A vida é feita de enganos. Os políticos enganam. Os líderes religiosos enganam. A propaganda, na sua totalidade, é feita de enganos: lançam a isca para que as pessoas – peixes - abocanhem o anzol... Mas tenho de louvar a sabedoria psicanalítica dos enganadores. Não é possível pescar usando como isca um pedaço de ferro. Só é isca aquilo que a pessoa deseja. Peixe deseja minhoca... A internet está cheia de iscas.
