Confianca Clarice Lispector
Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus.
Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era como se estivesse prenhe – palavras apenas na boca, que pouco tinham a ver com o centro secreto que era como uma gravidez.
Eu, que fabrico o futuro como uma aranha diligente. E o melhor de mim é quando nada sei e fabrico não sei o quê.
Cada coisa tem o seu lugar. Que o digam as pirâmides do Egito.
O bule de chá tão esguio, elegante e cheio de graça. Sim, mas tudo isso num instante passa, e o que fica é um bule velho e um pouquinho lascado, objeto ordinário.
Deus lhe deu inúmeros pequenos dons que ele não usou nem desenvolveu por receio de ser um homem completo e sem pudor.
Desencontro
Eu te dou pão e preferes ouro. Eu te dou ouro mas tua fome legítima é de pão.
Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem sabe, também eu já poderia não escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável.
Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.
Na certa cada um tinha o próprio caminho a percorrer interminavelmente, fazendo isso parte do destino, no qual ela não sabia se acreditava ou não. (...)
Então, e como sempre, era só depois de desistir das coisas desejadas que elas aconteciam.
O horrível dever é ir até o fim.
O homem. Como o homem é simpático. Ainda bem. O homem é a nossa fonte de inspiração? É. O homem é o nosso desafio? É. O homem é o nosso inimigo? É. O homem é o nosso rival estimulante? É. O homem é o nosso igual ao mesmo tempo inteiramente diferente? É. O homem é bonito? É. O homem é engraçado? É. O homem é um menino? É. O homem também é um pai? É. Nós brigamos com o homem? Brigamos. Nós não podemos passar sem o homem com quem brigamos? Não. Nós somos interessantes porque o homem gosta de mulher interessante? Somos. O homem é a pessoa com quem temos o diálogo mais importante? É. O homem é um chato? Também. Nós gostamos de ser chateadas pelo homem? Gostamos.
Poderia continuar com esta lista interminável até meu diretor mandar parar. Mas acho que ninguém mais me mandaria parar. Pois penso que toquei num ponto nevrálgico. E, sendo um ponto nevrálgico, como o homem nos dói. E como a mulher dói no homem.
A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda.
Dizem que se esconde por modéstia. Não é.
Esconde-se para poder captar o próprio segredo.
Seu quase-não-perfume é glória abafada
mas exige da gente que o busque.
Não grita nunca seu perfume.
Violeta diz levezas que não se podem dizer.
O que é que há? Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre – será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso? Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real.
Quero escrever noções sem o uso abusivo da palavra. Só me resta ficar nua: nada tenho mais a perder.
Só não me agradaram as notícias de que vocês duas não aproveitaram bem as férias. Detesto pessoas que se parecem comigo...
Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra.
Depois de um certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha.
De propósito não vou descrever o que vi: cada pessoa tem que descobrir sozinha. Apenas lembrarei que havia sombras oscilantes, secretas. De passagem falarei de leve na liberdade dos pássaros. E na minha liberdade. Mas é só. O resto era o verde úmido subindo em mim pelas minhas raízes incógnitas. Eu andava, andava. Às vezes parava. Já me afastara muito do portão de entrada, não o via mais, pois entrara em tantas alamedas. Eu sentia um medo bom – como um estremecimento apenas perceptível de alma – um medo bom de talvez estar perdida e nunca mais, porém nunca mais! achar a porta de saída.
Ouvira na Rádio Relógio que havia sete bilhões de pessoas no mundo. Ela se sentia perdida. Mas com a tendência que tinha para ser feliz logo se consolou: havia sete bilhões de pessoas para ajudá-la.
