Carta De Amor De Fernando Pessoa

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Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, ou até um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? E trabalho, amor, moradia? O que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. A questão é toda essa: fluir. Tão difícil deixar fluir. Mas é o que precisa ser feito agora. Virar barquinho, mesmo. Relaxar e observar o caminho, a paisagem, perceber minha respiração sempre tão junta da respiração do meu pequenino. E assim vamos fluindo, juntos. Correnteza leve, por favor. Que não estamos assim muito prontos pra grandes tormentas. Tá tudo bem na verdade. É só uma questão de se encontrar. Porque as vezes eu me perco e fico me procurando, e não me acho. Mas quem sabe assim, deixando que a água vá me levando, não dá certo, né? Deus dará…

'Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.'

Não sei se chegamos a nos abraçar, mas sei que falamos. Não havia nada para fazer lá em cima, a não ser falar. E nós tínhamos tão pouca experiência disso que falamos e falamos durante muito e muito tempo, e entre inúmeras coisas sem importância você disse que me amava, ou eu disse que te amava - ou talvez os dois tivéssemos dito, da mesma forma como falamos da chuva e de outras coisas pequenas, bobas, insiginificantes. Porque nada modificaria os nossos roteiros.

Eu estava parado no patamar da escada quando ele me disse: — Tenho sete formas. Navegue. Abraçou-me. Tinha cheiro de mar. Do mar que não há nesta cidade. Pedi que ficasse, como não ficou o outro. Mas não o suportaria, acrescentei a seguir. Sorriu, como se nada do que eu pudesse dizer fosse capaz de modificar sua partida. Ainda chove, tentei dizer. Não importa, será melhor assim, repetia sua mão estendida. Passou-a devagar na minha face. Eu era uma coisa pequena, rastejante e sem Deus, caminhando no escuro lamacento à procura apenas de qualquer gesto como o toque de uma mão humana, devagar na minha face. Ele tocou. Calçou os sapatos, apanhou o chapéu. Eu quis dizer que poderia ocupar o segundo quarto — a segunda cama, a segunda vida — talvez para sempre. Eu estava tão vivo que qualquer outra coisa também viva e próxima merecia minha mão estendida, oferecendo. Estendi a mão. Ele não podia aceitá-la. Eu não devia estendê-la.

Minha lâmpada de cabeceira está estragada. Não sei o que é, não entendo dessas coisas. Ela acende e, sem a gente esperar, apaga. Depois acende de novo, para em seguida tornar a apagar. Me sinto igual a ela: também só acendo de vez em quando, sem ninguém esperar, sem motivo aparente. Para a lâmpada pode-se chamar um eletricista. Ele dará um jeito, mexerá nos fios e em breve ela voltará a ser normal, previsível. Mas e eu? Quem desvendará meu interior para consertar meus defeitos?

Fiz fantasias. No meu demente exercício para pisar no real, finjo que não fantasio. E fantasio, fantasio. Até o último momento esperei que você me chamasse pelo telefone. Que você fosse ao aeroporto. Casablanca, última cena. Todas as cartas de amor são ridículas… E eu estava só começando a entrar num estado de amor por você. Mas não me permiti, não te permiti, não nos permiti.

Aqui no meu quarto também existem coisas que podem matar – a lâmina no aparelho de barbear, a própria janela de que gosto tanto. No quarto de meus pais há o revólver na gaveta, o vidro de comprimidos para dormir. Na cozinha, gás. No banheiro, aqueles vidros escuros de veneno. É fácil morrer. A toda hora, em todos os lugares, a morte está se oferecendo. Mais difícil é continuar vivendo. Eu continuo. Não sei se gosto, mas tenho uma curiosidade imensa pelo que vai me acontecer, pelas pessoas que vou conhecer, por tudo que vou dizer e fazer e ainda não sei o que será.”

Mas se você tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais — por que ir em frente? Não há sentido. (...) Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina. (...) Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar, de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo. Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas que seja bom o que vier, para você, para mim. (...) E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim – para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura.

"...pensando em mudar de vida, de emprego, de cidade, de país, que vontade, querida mamãe, de ser feliz, de ter um grande amor bem limpinho, bem clarinho, um amor de manha bem cedo, não diga nada a ninguém, não é preciso, mas cá entre-nós-que-ninguém-nos-ouça, não vem dando muito certo, tenho tentado, juro."

Mas de qualquer forma não conseguia definir o que se fez quando comecei a perceber as lembranças espatifadas pelo quarto. Não que houvesse fotografias ou qualquer coisa de muito concreto — certamente havia o concreto em algumas roupas, uma escova de dentes, alguns discos, um livro: as miudezas se amontoavam pelos cantos. Mas o que marcava e pesava mais era o intangível.

É provável que estivessem mentindo, eles dizem que eu preciso aceitar mais a realidade das coisas, a dureza das coisas, e às vezes penso que tornam de propósito as coisas mais duras do que realmente são, só pra ver se eu reajo, se eu enfrento. Mas não reajo nem enfrento. A cada dia viver me esmaga com mais força.

É triste habitar em vários corações, mas ter o próprio vazio. É angustiante ver aquela placa de "doa-se um coração" enferrujada pelo tempo. Ninguém gosta de morar em áreas inseguras. Um dia o beija-flor se cansa e, por ironia do destino, apesar de ter conhecido tantas flores, morre solitário entre espinhos.

Não me aproximo porque, veja bem, sabe lá quem habita a tua solidão. Hesito. Recuo. Me afasto tristíssima. E te imagino em poses e sorrisos, voz grave e cabelos desgrenhados, preso nas minhas fantasias mais loucas e movimentadas. Numa delas sou um bichinho invisível, com asas, que adentra tua casa e te observa em segredo. Faço o contorno do teu corpo todo com os olhos, parada contra a parede do teu quarto, imóvel, enquanto tu te atiras na cama. Cansado. Tu olhas para o teto imaginando mil coisas, memórias, compromissos, desejos, saudades. Te fito com dor. A luz do abajur faz sombra na tua pilha de livros, que folheei um dia e quis pedir emprestado mesmo sabendo que não havia intimidade para pedidos. Por razões que desconheço, nossas aproximações foram sempre pela metade. Interrompidas. Um passo para a frente e cem para trás. Retrocessos. Descaminhos. Procuro sinais de algum amor teu. Vestígios de noites passadas. Tu não me vês, estou incógnita a te observar. Como sempre estive, olhando pelas janelas, de longe, coração apertado. Nós poderíamos ser amigos e trocar confidências. Assistiríamos a filmes, taça de vinho nas mãos, e tu me detalharias as tuas paixões e desatinos. Nós poderíamos ser amantes que bebem champanhe pela manhã aos beijos num hotel em Paris. Caminharíamos pela beira do Sena, e eu te olharia atenta, numa tentativa indisfarçável de gravar o momento e guardá-lo comigo até o fim dos meus dias. Ou poderíamos ser apenas o que somos, duas pessoas com uma ligação estranha, sutilezas e asperezas subentendidas, possibilidades de surpresas boas. Ou não. Difícil saber. Bato minhas asas em retirada. Tu dormes, e nos teus sonhos mais secretos, não posso entrar. Embora queira. À distância, permaneço te contemplando. E me pergunto se, quem sabe um dia, na hora certa, nosso encontro pode acontecer inteiro. Porque tu és o único que habita a minha solidão.

Tem gente que se sente um jogador lidando com as pessoas, sempre tem uma estratégia, sempre tem uma saída e se esquecem que são pessoas e não peças! Pra você eu digo que quem dita as regras é o jogo e não o jogador! Já passaram por aqui outros jogadores e outros sempre virão e sabe quem sempre vence? O jogo! O jogo da vida...

"Que é isso? Xô, não, vamos lá, eia, avante, companheira, hei-de-vencer, Deus-provê e eu-mereço-mais, devem ser NOSSOS lemas na Nova República. Fique bem, please. Paciência — é preciso ter infinita paciência. Olhar meigo para tudo & todos. Humildade, decência, recato & pudor. A um passo da santidade."

Lembro que naquela manhã abri os olhos de repente para um teto claro e minha mão tocou um espaço vazio a meu lado sobre a cama, e não encontrando procurou um cigarro no maço sobre a mesa e virou o despertador de frente para a parede e depois buscou um fósforo e uma chama e fumei fumei fumei: os olhos fixos naquele teto claro. Chovia e os jornais alardeavam enchentes. Os carros eram carregados pelas águas, os ônibus caíam das pontes e nas praias o mar explodia alto respingando pessoas amedrontadas. A minha mão direita conduzia espaçadamente um cigarro até minha boca: minha boca sugava uma fumaça áspera para dentro dos pulmões escurecidos: meus pulmões escurecidos lançavam pela boca e pelas narinas um fio de fumaça em direção ao teto claro onde meus olhos permaneciam fixos. E minha mão esquerda tocava uma ausência sobre a cama.

Entenda que eu quero estar com você, do seu lado, sabendo o que acontece. Eu queria dizer que eu estava com você, e a menos que você não me suporte mais, continuaria te procurando e querendo saber coisas. De repente me passa pela cabeça que a minha presença ou a minha insistência pode talvez irritá-lo. Então, desculpa-não-insistirei-mais. Te quero imensamente bem. Fico pensando se dizendo assim, quem sabe, de repente, você acredita.

Essa roda girando girando sem parar. Olha bem: quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais de saco cheio um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não segurar nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero ninguém. Nem você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter.

"Odeio amar, não é engraçado? Amanhã tento de novo. Amar só é bom se doer. Parou de chover. Não sei qual o Deus padroeiro das cartas - mas de qualquer maneira a noite de hoje foi dedicada a ele. Hoje eu queria que alguém me dissesse que eu não precisava me preocupar - como no Last Picture Show - um ombro, uma mão. Desculpe tanta sede, tanta insatisfação. Amanhã, amanhã recomeço. Te espero, te gosto, te beijo."

Que as perdas sejam medidas em milímetros e que todo ganho não possa ser medido por fita métrica nem contado em reais. Que minha bolsa esteja cheia de papéis coloridos e desenhados à giz de cera pelo anjo que mora comigo. Que as relações criadas sejam honestamente mantidas e seladas com abraços longos. E que seja doce tudo que tiver que ser.

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