Textos Maes Carlos Drummond

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VINGANÇAS

⁠A vingança não dura um segundo
No coração dos simples e puros
Como a água cristalina e corrente
Que desliza frémita e tão contente
Passando apressada nas barreiras
Marcações de pedras fronteiras
E socalcos das terras do mundo.

Água vinha
Água vem
Água se foi
Água mansinha
Sem mais ninguém.

A vingança, por si se dói,
Nos corações benditos.
Nos corações empedernidos
Sem ponta de bons fluídos,
Ela corrói e destrói,
Vem, mas não vai.

É teimosa,
Birrenta
Como égua fanhosa
Peçonhenta
Que rebenta nos piores adjetivos.

Mas vai um dia na noite que cai
Com ventos de depuração.
Vingança que não vai
Não tem razão
De morar nos sem sentidos
Dos corações bandidos.

E eis que os corações tais
Desses empedernidos mortais
Não aguentaram o choque
E morreram sem esperança
Nem reboque
De aplicar a vingança.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 02-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

⁠OS POETAS DE DOM NASCEM E
MORREM SOZINHOS

Ninguém sabe.
Ninguém quis saber.
E tão fácil era adivinhar.

Os poetas anacoretas
Ascetas
Merecedores do dom
De mostrar a alma em facetas
Já nasceram antes do nascer,
Já sofreram antes de sofrer,
Porque tiveram medo
De fazer padecer
Todos os que não são como eles.

Cada um nasce, se quiser,
Já depois de nascido,
E apresentado ao mundo.

E quando esses poetas decidirem morrer
Ninguém vai saber
Como eles conquistaram
Aquilo que sempre amaram...

Tanta paz
Capaz
De um sono profundo.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 03-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

VIRGINDADES

⁠Foram e serão como árvores
Sem fruto
Em seu voto absoluto
De entregar-se,
Devotar-se,
A um só corpo impoluto.

Nunca gerado e resoluto
Por mais tentação que venha
Lá dos varões assinalados
E mestrados.

Confessam-se a padres enamorados:
"Antes morta, do que prenhe,
Não desdenhe, não desdenhe,
Que cá nesta minha ordenha,
Eu sou a santa e a senha
Pela qual me registo
E virgem serei e resisto!".

E num terminar de emoções
Deitam a mão a uns cordões
De recordações
Nefastas,
Mas para resistirem castas
Naquele gostoso furor,
Invocam o seu amor a Cristo!

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 04-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

A MENINA E A ÁRVORE

⁠Desprevenido, plantei-te!
Sem escavar sequer um palmo
De terra do fundo germinador.

Quando brotaste o tronco esguio
E os ramitos
Pequenitos
Numa manhã chuvosa,
Custosa e fanhosa
De um Março marçagão,
Colei a minha trémula mão
À tua tão pequenina,
Magrinha,
Comprida, de pianista.

Parece impossível!
Haverá alguém que resista...

Deste-me na minha um esticão,
Como a querer fugir de mim.

Tomei isso como premonição
Negra,
Amarga
E fúnebre.

Continuas com a tua mãozita pequena
Da tua árvore a envelhecer
De madura,
No tronco e nos ramos
Mas com as maçãs tão verdes,
Ácidas,
Intragáveis.

Tão inutilmente
No perto,
Longe
De mim.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 06-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

NOVOS TEMPOS VIRÃO

⁠Há tempos atrás dos tempos,
O vento sussurrou-me ao ouvido:

" O sol vai deixar de brilhar!
A lua, viúva, de negro vai ficar!
A chuva, disse-me, vai mirrar!
Eu, por mim, estou a esvaziar!
O céu, vai cair a arder,
No leito seco do mar!
As montanhas irão desmoronar!
Os prados verdes vão crestar!
As árvores, de podres, irão chorar!
Ouvir-se-ão estrondos de terrificar!
Ficarão inertes as aves e os peixes
Sem ar, sem água, a agonizar! "

Carrancudo, perguntei ao vento:
" Ouve lá, ó vento, então eu quero saber:
Porque razão me estás a meter
Tanto medo de arrepelação !?...
Assim sendo, diz-me para onde vou,
Ou então!?...

Aí, o vento mudou de ouvido e segredou-me:

Alguns como tu, ficarão
Na nova terra que há de brotar
Das cinzas da ressurreição,
Onde não haverá castigo nem metas,
Apenas um tempo novo
Onde habitará um nóvel povo,
No promissor mundo dos poetas! "

(Carlos de Castro, In Há Um Livro Por Escrever em 08-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

DESCOBRIR A VIDA NA MORTE

Eu já faleci, há uns anitos...
Fizeram-me todas as encomendações
E recomendações conforme a fé familiar...
Segui, por fases, todos os trâmites legais
E funcionais, entre os quais:
Como era grande pecador,
Passei primeiro pelo crivo
Doloroso da peneira das penas do Inferno,
Que me chamuscava os sovacos da primavera ao inverno.

Passaram-me depois a outra repartição:
Esta, bem mais animadora,
Graças minhas a Nossa Senhora!
Eram os tempos do Purgatório,
Onde me fizeram purgar tudo e o acessório.
Mas, senhores, puseram-me tão magrinho!
Chegada a hora de melhor sorte,
Fizeram-me chegar de elevador ao piso seguinte,
Numa manhã luminosa e serena,
Ao Céu, aos Pés de Nosso Senhor da Boa Morte!
Olhou contristado para mim e falou:
Que purga! Que magrinho e tão tristinho!
Aí, eu fiz uma cara de anjinho e Ele continuou:
Rapaz! Vais ter direito a banho de sais e mais...
Vão dar-te calção de praia, óculos de sol e t-shirt.
Depois, vais mas é divertir-te!...
Respondi, com decisão:
Não, Meu Senhor!
Se estou no Céu, quero primeiro ver a minha mãe, meu pai, irmãzinha e tantos mais!
Não é que Nosso Senhor, começou a arrotar
E a deitar pelos olhos luzes fatais!?...
Sentei-me no chão e comecei a chorar, a chorar...cada vez mais!
Senti uma mão no ombro, tão leve e serena, como uma pena...
Era o Nosso Senhor a dizer: Vamos lá, rapaz, vamos à nossa vigília.
Não demora muito e verás a tua família. E eu sosseguei!...

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 09-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

⁠VINDIMA DE ESPERANÇAS

Quando se ama ou se volta a amar
A natureza perdida,
É sinal que a própria vida
Mesmo que dolorida
Tem esperança noutra saída
Rumo a um nova vindima.

Afagam-se os cachos com carinho
De baixo para cima
Como numa rima.

Provam-se as uvas coloridas
Prenhes de doçuras convertidas
Em álcoois depois amadurecidos
Em madeiras velhas consentidos
E fatalmente domados,
Aconchegados odores de bom vinho
Em toneis anciãos embriagados.

Era o Douro da Pesqueira em braços
De mulheres e homens de desembaraços
A soltar da cepa mãe, os filhos maduros
Naqueles socalcos pedregosos e duros.

Alguma lágrima vertida ao arrancar
Em doloroso transe de despedida,
A uva néctar fadada a uma nova vida.

Eram os bagos gordos e mimados
Pela natureza sol e solo vividos,
Que logo na prova primeira,
Fazem da minha amada Pesqueira,
A mãe do vinho dos meus sentidos.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 13-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

⁠ALMAS GÉMEAS

Ninguém me vê...
Acabrunhado
Ao mortificado,
Nesta cadeira velha
Que faz doer as cruzes
Deste esqueleto
Já absoleto
Que se senta
Rumo aos setenta
À espera de algumas luzes.

Ainda bem que ninguém me vê...
Neste cubículo escritório,
Em sistema de dormitório,
Para dar em cada dia ao mundo
Um poema infecundo
Teorema lógico
Dos axiomas
Postulados
Gravados
No sistema patológico
Rumo doloroso
Até conseguir o dialógico
Gostoso,
De ter alguém em simpatia,
Que todos os dias em sintonia,
Anima e faz viver a minha poesia.

(Carlos De Castro, in Há Hum Livro Por Escrever, em 15-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

⁠QUEIMADURAS

Queimei o meu cerebelo
Que fica por debaixo de algum cabelo
Que me resta
Do pescoço à testa
Na formação córnea do elemento
Que me trazia discernimento.

Crestei-o,
Chamusquei-o
Em pensamentos brutais,
Que me estarreceram
E embruteceram
No mais horrível dos mortais.

Jurei então nunca mais
Agora ou em qualquer altura,
Dar uma razão de soltura
E voltar a incendiar
O meu cerebelo
Num fogo feito flagelo
Sem ter quem o possa apagar.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 20-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

PÁSSARO LIBERTADOR

⁠Na linha imaginária do horizonte,
Filtrada pelo sol já passageiro,
Vejo um vulto, asa de anjo
Que me chora logo defronte
A esta janela do meu derradeiro
Olhar cativo no monte
Do meu penar,
Sem te poder mais amar.

Anda, passarita Clara.
Com o teu bico de beijo,
Inicia-me no teu solfejo
E liberta-me desta amarra.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 27-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

⁠QUE SOSSEGO

Era só a minha avó.
E em tardes de calmaria
Debaixo da velha ramada
Das folhas do morangueiro
O corriqueiro,
Americano,
Ela, aos botões, dizia:
- Que sossego! Bendito ano!

Ela não sabia
Que eu estava
Com ela,
Mirando-a de uma janela
Pequenita que havia
Logo atrás dela.

E eu ouvia tudo naquela viagem
Feita miragem
Que minha avó fazia,
De consciência apurada,
Sem precisar de andar
Ou sola dos chinelos gastar
Em qualquer estrada...

Foi ela que me ensinou,
Aqui onde vou,
Que para sonhar,
Só basta estar!

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 29-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

MEU MAR MINHA LINHA

⁠Era eu um pequenito
Naquela praia grande
De areal imenso
Do então Espinho extenso.

Eu ficava sozinho
Sentado numa pedra
Mais ao longe
Como que a comandar
A proa do meu barco
Rumo àquela linha do horizonte
Que eu via sempre direitinha
Com aqueles barcos grandes
De cargas de pão, de ouro
E especiarias, nos porões
Das fantasias.

Se calhar alguns petroleiros
Assaltados pelos piratas
Da minha verde imaginação
Que passavam com pachorra,
Na linha, do mar quente de verão.

E eu então imaginava:
Para além daquela linha, ficava
A Beira de Moçambique,
Era aí que o meu pai morava.

Não muito longe, eu via numa tela:
A Caracas do meu tio Vitorino,
Emigrado em Venezuela.

Depois, de barriga vazia
Voltava à areia da praia,
Morna da sorna da tarde
Que se ia com os barcos
E convidava ao sono.

Então, eu cobria-me com o meu manto
De areia
E, entretanto,
Adormecia...

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 30-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

DORA DA MINHA DOR

⁠Clamei por ti noites inteiras.
Eras a Dora
Da minha hora,
Que foi amar-te nas clareiras
Das selvas em que vivi.

E eu sempre a chamar por ti.
E a Dora que agora
Me desadora,
Esta perfumada e rica senhora
De berloques de jóias gamadas,
De mamas por gigas sustentadas,
Faz de conta que não existo
Na sua memória cruel!

Não adiantou eu dizer: Sou o Manel,
O que te aliviou o "vírgulo"!
Pelo visto e sem mais vírgula
É triste lembrar assim
Quem não se lembra de mim...

Ah, Dora, mulher fatal,
Que matas qualquer mortal
Como me mataste por fim!

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 31-05-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

JOGUETE

⁠Fui-o.
Nas tuas mãos pouco macias
Perfumadas das bruxarias
E senti-o.

Foste lançando o feitiço
Como bruxa que lança em derriço
Incenso aos lanços nas brasas
Que fazem faíscas
Ariscas, com que arrasas
A vontade de dizer, não!

E sem mais contemplação
De outro piedoso pensar,
Louca mulher, sem paixão
Nem vontade de se amar.

(Carlos Vieira De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 01-06-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

DITADOS

⁠E o ditado a dizer:
A cama que fizeres,
É aquela em que te vais deitar
E queira Deus que não vás penar...

Que sentença crua, de arrepiar!

Agora, digo eu, neste inocente pensar:
Mentira!
Fiz tantas camas na vida
Umas de pedras,
De pano e de ervas
E outras de sumaúma,
Mais macias que nenhuma.
Em todas descansei,
Amei
E gostei.

Só houve uma,
A de sumaúma,
Macia como nenhuma,
Onde não amei
E chorei.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 02-06-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

⁠ESPERA DESESPERADA

Na velha gare esperei por ti;
Na esperança anunciada
De te ter como coisa amada
Naquilo que ao ganhar perdi.

Só depois é que vi
Que as estradas
E os carris das vidas
São feitos de tudos e nadas.

Nem sempre são retas desejadas
Para alcançar o sonho final,
Se não a mim e ao mundo
Vai um logro tão profundo,
Um medonho e abismal
Desígnio infernal
Nas encruzilhadas do mal.

Dessas, eu nunca me lembrei...
Por descuido me esqueci.
Agora, eu sei
Porque peno assim por ti.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 04-06-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

CEREJAS

Degustava eu um ramo delas,
Quase assim.
Uma mais vermelhas
Ainda de formas fedelhas
De polpa ruim.

Outras, matizadas de branco,
Amarelado,
E eu sou franco,
Deixei as amarelas de lado.

Algumas, de bordeaux vincado,
Mas só cor
Sem sabor
Adocicado.
Poucas mais encontrei
Doces
Ainda que maduras
Apesar de duras
Como o mel melado.

Ia a meter a última à boca
E parei.
Era mais redondinha que as outras
Mas muito vermelhinha
E tinha
Uma outra cerejinha
Pegada à sua barriguinha
Como uma mãe que acabou
De dar à luz,
E quer mostrar a filhinha
Que reluz.

Tive pena de as comer
E num rebate de consciência,
Com exemplar paciência,
Fui metê-las em terra fresquinha:
A cereja mãe e a filha,
À espera que um dia destes
Irão nascer mais cerejas
Assim,
Por mim.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 05-06-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

POESIA PRENHE

⁠Muitos,
Que tudo fazem
E desfazem
Para emprenhar a doce
E tão amarga
Presa ou solta à ilharga
Senhora bela - A poesia.

Sem nome de pai,
De mãe ou de tia,
Pelo menos nada consta
No cartão de cidadania.

Basta-lhe ser poesia
Pura, rebelde e arisca,
Não deixar copular
Macho ou fêmea,
Ou qualquer outro artista
Que só lhe quer levar a palma.

Gosta de preliminares,
De beijos e doces olhares
Sussurros loucos ao ouvido,
E embriaguez na alma.

Adora longos coçares
E muito depois então
É que abre as pernas
Para ejaculares
E te dar um dia
Um filho da poesia.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 08-06-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

ALMA RELUZENTE

⁠Pensava ser eu uma alma reluzente.

Como tudo é tão diferente do pensado,
Quando num ápice repente
Recebo, vindo voando, ó gente!
Num escangalhado parapente,
Um anjo do Altíssimo Céu navegado,
Que me diz:

- Rapaz infeliz, sem alma reluzente,
Nunca te eleves, tem calma!
Para teres lustrosa alma,
Primeiro terás de ser gente
De construção hercúlea diferente,
Onde, de facto, o sonho habita.

E só depois,
Muito exigente,
É que a tua alma acende e grita!

(Carlos De Castro, in há Um Livro Por Escrever, em 15-06-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro

⁠RISOS

Riam-se em doidice de tão loucos,
Em despregadas e reles bandeiras,
Com dentes podres pelas asneiras,
Os tais grotescos eunucos taroucos.

Eram desafinados e afinal tão roucos,
Mal orquestrados, uma pobreza, enfim,
Que mal eu os ouvi a rirem de mim,
Disse comigo: Façamos ouvidos moucos.

Eram seres de peçonha tinha maligna,
Doença que não poupa corpo nem alma
E só ataca multidões de gente indigna.

Um poeta, nunca morre sem a palma,
Nem se deixa matar por algum estigma,
Ele morre por si só, na mais serena calma.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 20-06-2023)

Inserida por CarlosVieiraDeCastro