Poesia Carinho Machado de Assis
Gosto da claridade penumbrosa
de adolescentes indecisos.
Gosto deles assim lentos
inaptos, vorazes, sedentos
do labor meticuloso e da
antiquíssima sabedoria de outras mãos.
Anjos devastados, senhores do caos
é para longe que partem.
A tua ausência
a encher-se de dunas.
Aquele bater de vidraças
na orla da praia.
O silêncio a insistir
a recusar-se ao rumor.
E a vida a fluir,
lá fora.
Nenhum de nós passeia impune
pelos retratos: fazem-nos doer
os recessos da memória.
Deles saltam, por vezes, sustos,
primeiras noites, secreta
loucura, lábios que foram.
Interditam-nos sempre.
Trepam-nos pelo torpor
mais desprevenido, subsistem.
A sua perenidade é volátil
e cheia de venenosos ardis.
Um sopro no acetato.
Distintos, os seus contornos
não são nunca
os que supomos.
A noite toda a selva
dissolvendo-se em sândalo
e esquecimento.
Casas, degraus a prumo, águas
despedaçadas. Equilíbrio precário
num fio de luz.
Toda a noite a luz multiplicou
o instantâneo de um rosto intraduzível.
Esquiva, a tua morte não escapou
à ladainha de regra.
Correu uma versão torpe quando
te viram a sorrir
uma ironia de druida clandestino,
indiferente à voragem dos bárbaros.
DENTRO DA VIDA
Não estamos preparados para nada:
certamente que não para viver
Dentro da vida vamos escolher
o erro certo ou a certeza errada
Que nos redime dessa magoada
agitação do amor em que prazer
nem sempre é o que fica de querer
ser o amador e ser a coisa amada?
Porque ninguém nos salva de não ser
também de ser já nada nos resgata
Não estamos preparados para o nada:
certamente que não para morrer
Talvez eu não consiga quanto amo
ou amei teu ser dizer, talvez
como num mar que tu não vês
o meu corpo submerso seja o ramo
final que estendo já não sei a quem
Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio
Reformulamos o amor porém se fórmula
não existia como repeti-la?
É preciso criar um eco ambíguo
que deixe de ser eco e tome a forma
do que viver possa ter sido:
encontraremos restos do sentido
que num instante incerto alguma coisa fez
e nunca poderá ser repetido
Acto de Contrição
Pela luz rara da garagem dois vultos
vão pôr o lixo. São velhos desconhecidos. Um
ao outro dão passagem (a
máscara de um cumprimento) esquivos na
escatológica arqueologia das misérias.
Homens de lixo na mão: exímios
a ocultar
versos da vida doméstica (quando
o gesto liso cabe ao avental abundante que os
devolve a casa). Há
em todo esse agravo uma redenção ferida
(um juízo resolvido) como que um
indulto lento.
Nunca tanto como hoje reparei com atenção
na
luz do sol de Janeiro. Forte
mas delicada. Furtiva
mas
demorada. Não arde nem faz tremer.
Não é densa nem clara. A
luz
do sol em Janeiro:
assim é o nosso amor
oculto pela tinta dos dias apenas
espreita uma aberta
(uma distracção das nuvens)
para
luzir e irromper
(nunca antes como hoje precisei)
tanto que o vento lhe desse oportunidade).
O nosso amor
é Janeiro:
mesmo se o julgo esquecido
sei que
está sempre lá.
O meu marido
saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.
Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.
Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.
Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.
Assim devera eu ser
se não fora não querer.
antes chova,
do que nunca.
uma releitura sobre a chuva,
cujos corpos se derretem.
repouso mental,
para o ar passar.
passar ar.
pra sar ar,
passa ar.
passa ar.
pas,
ar.
A cortina se estufa
quarto adentro como se viva
a primeira trovoada
reboa lá fora
o cachorro corre e
se esconde na escada
escura
a cortina se estufa
como se animada por dentro
da trama do tecido
o fole de um pulmão
que sugere:
nada mais
urgente do que inspirar
este momento
(nada:
nem mesmo um cortejo inteiro
de notícias ou poemas)
este momento
a tempestade em prelúdio
e o sopro
de lilases
que ela traz.
Nos objetos fabricados pelos tuaregue
com seus poucos recursos
para o uso cotidiano
bolsas
selas de camelo
tendas
seria de se supor alma seca
alinhavada pela funcionalidade
no entanto eles os fabricam
intrincados
coloridos
lindos
com seus poucos recursos
cunhando
do deserto
um carnaval
não sei de quem a mão
fantasma que esfuma
o meu rosto o meu tempo o reflexo
que me habituei
a confirmar aqui
não sei quem plantou
na minha cara uma outra
biografia
não sei ao certo
mas desconfio que essa neblina
no espelho
seja eu.
Poderia praticar esta forma de vida
que me assenta melhor do que a minha.
Quero dizer
é dentro da cabeça
e fora da minha vida
que me sinto menos só.
Poderia ficar aqui algum tempo
deslocando a cadeira
para acompanhar a trajectória do sol.
Não o faço.
Abro a porta que dá para a casa
e deixo devoluta a vida
imaginária no jardim.
Preferia não saber das ruas
onde posso desfazer-me do desejo.
Ir ao encontro das estátuas
para me refazer do medo.
A noite é pequena e cabe
num gesto atirado ao ar
quando se parte sem olhar para trás,
nem necessidade de confirmar amor algum.
Tirei tudo dos bolsos.
Toquei o rosto para sentir a temperatura.
Não estou morta nem vou morrer.
De regresso a casa, a única certeza:
que a manhã virá para reflectir a palidez,
a habitual dificuldade em existir cedo.
Chego ao campo e encontro
a transparência que me arrebata.
A paisagem sonora nada interrompe,
propaga-se pelo ar e regressa em eco.
O dia finda na debandada dos pássaros.
Durante a noite o fogo alimenta-me.
O vinho e a madeira dilatam,
indiferentes à estação.
Deitada na cama não me falta o ar.
Do céu vê-se a casa,
na casa o quarto,
dentro dele, eu.
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