Poemas inteligentes

Emoção e Poesia

Quem quer que seja de algum modo um poeta sabe muito bem quão mais fácil é escrever um bom poema (se os bons poemas se acham ao alcance do homem) a respeito de uma mulher que lhe interessa muito do que a respeito de uma mulher pela qual está profundamente apaixonado. A melhor espécie de poema de amor é, em geral, escrita a respeito de uma mulher abstrata.

Uma grande emoção é por demais egoísta; absorve em si própria todo o sangue do espírito, e a congestão deixa as mãos demasiado frias para escrever. Três espécies de emoções produzem grande poesia - emoções fortes e profundas ao serem lembradas muito tempo depois; e emoções falsas, isto é, emoções sentidas no intelecto. Não a insinceridade, mas sim, uma sinceridade traduzida, é a base de toda a arte.

Eu fora obrigada a entrar no deserto para saber com horror que o deserto é vivo, para saber que uma barata é a vida. Havia recuado até saber que em mim a vida mais profunda é antes do humano – e para isso eu tivera a coragem diabólica de largar os sentimentos. Eu tivera que não dar valor humano à vida para poder entender a largueza, muito mais que humana, do Deus. Havia eu pedido a coisa mais perigosa e proibida? arriscando a minha alma, teria eu ousadamente exigido ver Deus?

E agora eu estava como diante Dele e não entendia – estava inutilmente de pé diante Dele, e era de novo diante do nada. A mim, como a todo o mundo, me fora dado tudo, mas eu quisera mais: quisera saber desse tudo. E vendera a minha alma para saber. Mas agora eu entendia que não a vendera ao demônio, mas muito mais perigosamente: a Deus. Que me deixara ver. Pois Ele sabia que eu não saberia ver o que visse: a explicação de um enigma é a repetição do enigma. O que És? e a resposta é: És. O que existes? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não a de ouvir a resposta.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu?
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem.
Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também isto perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Que suave é o ar!
Como parece
Que tudo é bom na vida que há!
Assim meu coração pudesse
Sentir essa certeza já.
Mas não; ou seja a selva escura
Ou seja um Dante mais diverso,
A alma é literatura
E tudo acaba em nada e verso.

O pior é que ela poderia riscar tudo o que pensara. Seus pensamentos eram, depois de erguidos, estátuas no jardim e ela passava pelo jardim olhando e seguindo o seu caminho.

Estava alegre nesse dia, bonita também. Um pouco de febre também. Por que esse romantismo: um pouco de febre? Mas a verdade é que tenho mesmo: olhos brilhantes, essa força e essa fraqueza, batidas desordenadas do coração. Quando a brisa leve, a brisa de verão, batia no seu corpo, todo ele estremecia de frio e calor. E então ela pensava muito rapidamente, sem poder parar de inventar. É porque estou muito nova ainda e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto – refletia.

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Hai-Kai da Cozinheira

A cozinheira preta preta
Preta e gorda
Com seu frescor sorriso de lua...

Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. (...)

E morre-se sem ao menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma explicação. (...)

E ter a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por que não posso andar em trapos (...)?

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trechos da crônica Dies irae.

...Mais

Aqui está-se sossegado

Aqui está-se sossegado,
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.
Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo.
Mas invisíveis serpentes
Faziam-a ser do mundo.
Tinha os gestos inocentes.
Aqui tudo é paz e mar.
Que longe a vista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde!
Aqui tudo é paz e mar.
Sim, poderia ter sido...
Mas vontade nem razão
O mundo têm conduzido
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido...
Agora não esqueço e sonho.
Fecho os olhos, oiço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que veio azul a esverdear.
Agora não esqueço e sonho.
Não foi propósito, não.
Os seus gestos inocentes
Tocavam no coração
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não.
Durmo, desperto e sozinho.
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho —
Um movimento sem lida...
Durmo, desperto e sozinho.
Nada explica nem consola.
Tudo está certo depois.
Mas a dor que nos desola,
A mágoa de um não ser dois
Nada explica nem consola.

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlaçemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente.
E sem desassossegos grandes.

– O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua voz era uma seta clara e fina.
A professora olhou para Joana. – Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.
– Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
– Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? – repetiu a
menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
– Que ideia! Acho que não sei o que você quer dizer, que ideia! Faça a mesma
pergunta com outras palavras...
– Ser feliz é para se conseguir o quê?

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

"NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
(...)
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?"

No Ouintana's Bar,
sou assíduo cliente.
É um bar que não é bar,
é um bar diferente.

Você reclama contra o meu desalento. Tem razão, Francisco, sou um pouco desalentada, preciso demais dos outros para me animar. Meu desalento é igual ao que sentem milhares de pessoas. Basta, porém, receber um telefonema ou lidar com alguém que eu gosto e minha esperança renasce, e fico forte de novo. Você na certa deve me ter conhecido num momento em que eu estava cheia de esperança.
Sabe como eu sei? Porque você diz que sou linda. Ora, não sou linda. Mas quando estou cheia de esperança, então de minha pessoa se irradia algo que talvez se possa chamar de beleza. (...)
A hora de rir há de chegar, Francisco.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Adeus, vou-me embora!

...Mais

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas ideias que tremo, com minha consciência de mim,
Com a substância essencial do meu ser abstrato
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo de ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!
Cárcere do ser, não há libertação de ti?
Cárcere do pensar não há libertação de ti?
Ah, não, nenhuma, nem morte nem vida nem Deus!
Nós, irmãos gêmeos do Destino em ambos existirmos,
Nós irmãos gêmeos dos Deuses todos de toda a espécie,
Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,
Sombra sejamos ou sejamos luz, sempre a mesma noite.

PROIBIDO PISAR NO GRAMADO
Talvez fosse melhor dizer:
PROIBIDO COMER O GRAMADO

O poeta entra no elevador
O poeta sobe
O poeta fecha-se no quarto
O poeta está melancólico.

SONETO 3

Mira no espelho e descreve o rosto que vês;
Agora é o tempo em que a face deve mudar,
Cujos reparos não tenhas logo renovado,
Terás enganado o mundo, à revelia de tua mãe.
Onde está a bela, cujo ventre não semeado
Desdenha o cultivo de teus cuidados?
Ou de quem será a tumba de um ser tão cioso
De seu amor-próprio para negar a posteridade?
És o espelho de tua mãe, e tua semelhança
Recorda os adoráveis dias de sua primavera;
Então, pela tua idade, poderás ver,
Apesar das rugas, o teu tempo áureo;
Mas se vives para não seres lembrado,
Jamais te cases, e tua imagem fenecerá contigo.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
Á parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto, ...
...Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real...

Se uma águia fende os ares e arrebata
esse que é forma pura e que é suspiro
de terrenas delícias combinadas;
e se essa forma pura, degradando-se,
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima, tributo
com que se paga o vôo mais cortante;
se, por amor de uma ave, ei-la recusa
o pasto natural aberto aos homens,
e pela via hermética e defesa
vai demandando o cândido alimento
que a alma faminta implora até o extremo;
se esses raptos terríveis se repetem
já nos campos e já pelas noturnas
portas de pérola dúbia das boates;
e se há no beijo estéril um soluço
esquivo e refolhado, cinza em núpcias,
e tudo é triste sob o céu flamante
(que o pecado cristão, ora jungido
ao mistério pagão, mais o alanceia),
baixemos nossos olhos ao desígnio
da natureza ambígua e reticente:
ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no acerbo amor.

Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?

Fernando Pessoa

Nota: Trecho adaptado de "Fausto: tragédia subjectiva", de Fernando Pessoa.