Poemas inteligentes
Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.
“Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo”. Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.
A caixa que não tem tampa
Fica sempre destapada
Dá-me um sorriso dos teus
Porque não quero mais nada.
Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Quando eu morrer não chores mais por mim
Do que hás de ouvir triste sino a dobrar
Dizendo ao mundo que eu fugi enfim
Do mundo vil pra com os vermes morar.
E nem relembres, se estes versos leres,
A mão que os escreveu, pois te amo tanto
Que prefiro ver de mim te esqueceres
Do que o lembrar-me te levar ao pranto.
Se leres estas linhas, eu proclamo,
Quando eu, talvez, ao pó tenha voltado,
Nem tentes relembrar como me chamo:
Que fique o amor, como a vida, acabado.
Para que o sábio, olhando a tua dor,
Do amor não ria, depois que eu me for.
Ausente andei de ti na primavera,
quando o festivo abril mais se altavia,
e em tudo um'alma juvenil pusera
que Saturno saltitava e ria.
Se um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.
Bernardo Soares
O Universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso
"Entendo que a poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem SE entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo um ser a mercê de inspirações fáceis, dóceis às modas e compromissos'".
Carlos Drumond de Andrade
Quem tem dois corações
Me faça presente de um
Que eu já fui dono de dois
E já não tenho nenhum
Dá-me beijos, dá-me tantos
Que enleado em teus encantos
Preso nos abraços teus
Eu não sinta a própria vida
Nem minh’alma ave perdida
No azul amor dos teus céus
Botão de rosa menina
Carinhosa, pequenina
Corpinho de tentação
Vem morar na minha vida
Dá em ti terna guarida
Ao meu pobre coração
Quando passo um dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho
Cobre-me um frio de janeiro
No junho do meu carinho.
Eu sou a pedra no meio do meu caminho.
gostaria de esquecer que vivo tropeçando em mim:
ao invés de olhar por onde ando,
tentando me desviar de comigo,
olharia o horizonte, bem lá adiante,
onde ainda não cheguei pra me atravessar o caminho.
Essas coisas
“Você não está na idade
de sofrer por essas coisas.”
Há então a idade de sofrer
e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas ?
As coisas só deviam acontecer
para fazer sofrer
na idade própria de sofrer ?
Ou não se devia sofrer
pelas coisas que causam sofrimento
pois vieram fora de hora, e a hora é calma ?
E se não estou mais na idade de sofrer
é porque estou morto, e morto
é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?
Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
Soneto LXXVI
Por que está o meu verso tão vazio de rompantes novos?
Tão longe de variações ou de tempos diferentes?
Por que, com o tempo, não vislumbro eu
Novos métodos e variantes inéditas?
Por que escrevo eu ainda uno, sempre o mesmo
E mantenho a invenção em uma região conhecida,
Que cada palavra quase me conhece por nome,
Mostrando o seu nascimento e de onde proveio?
Ah, saiba, querido amor, eu escrevo sempre de ti,
E tu e o amor são ainda meu argumento;
Então todo o meu melhor é vestir de roupagem nova palavras velhas,
Gastando novamente o que gasto já foi;
Assim como o sol diariamente é novo e velho,
Assim também está o meu amor a dizer o que é dito.
Soneto XXIII
Tal qual amador no palco,
Que com seu medo é substituído em sua parte,
Ou algo de feroz com seu excesso de raiva,
Em sua abundância de força, fraqueja internamente;
Assim eu, medroso com falta de confiança, me esqueço de dizer
A cerimônia perfeita do rito amoroso,
E na própria força do meu amor pareço decair,
Sobrecarregado com o peso do próprio poder do meu amor.
Ah, deixa então que os meus livros sejam a eloquência
E mudos presságios do meu peito transbordante;
Que roga por amor e tenta ser recompensado
Mais do que aquela língua que mais já se expressou.
Oh, aprenda a ler o que o amor silente escreveu;
Ouvir com os olhos pertence ao fino senso do amor.
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada
Duas vezes se morre:
Primeiro na carne, depois no nome.
Os nomes, embora mais resistentes do que a carne, rendem-se ao poder destruidor do tempo, como as lápides.