Poemas de Caio Fernando Abreu
Às vezes me espanto e me pergunto como pudemos a tal ponto mergulhar naquilo que estava acontecendo, sem a menor tentativa de resistência. Não porque aquilo fosse terrível, ou porque nos marcasse profundamente ou nos dilacerasse — e talvez tenha sido terrível, sim, é possível, talvez tenha nos marcado profundamente ou nos dilacerado — a verdade é que ainda hesito em dar um nome àquilo que ficou, depois de tudo. Porque alguma coisa ficou.
Olha: foi bom demais te conhecer. Me deu uma fé, uma energia. Sei lá. Ainda não consegui aterrizar bem da viagem e estou sofrendo um pouco, mas tudo bem. Te escrevo mais logo.
Tenho assim… aquela coisa… como era mesmo o nome? Aquela coisa antiga, que fazia a gente esperar que tudo desse certo, sabe qual? (…) Esperança!
Gasto toneladas de incenso, sacas de sal grosso. E vamos levando. Se ficar heavy metal demais, dou o fora.
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.
Resistimos, aos trancos, já nem sei se foi escolha ou solavanco. Difícil arrancar uma certa lucidez disso tudo.
Mas tomo copos de leite, durmo bastante, e repito sempre que, seja o que for, vou sair desta pelo menos mais sadiozinho.
As pessoas estão enlouquecendo, sendo presas, morrendo de overdose e você fica aí pelos cantos choramingando o seu amor perdido.
Eu vou gostando, eu vou cuidando, eu vou desculpando, eu vou superando, eu vou compreendendo, eu vou relevando, eu vou… e continuo indo...
Você pergunta: “todos os vernizes descascam?” Eu acho que para quem tiver a coragem de deixá-los descascar, sim. E isso é bom.
Pronto: agora tenho que sair correndo outra vez para ganhar a vida. Ganhar ou perder? Eu sei a resposta. Mas posso cantar baixinho um velho Roberto Carlos, aquele assim: “Querem acabar comigo/ isso eu não vou deixar”. Juro que não."
Você fala em casar. Algum tempo atrás falei nisso talvez por romantismo, por solidão ou brincadeira, ou mesmo seriamente. Não quero casar. Casamento é uma coisa completamente estúpida.
Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não achei que ia conseguir dizer, quero dizer, dizer tudo aquilo que escondo desde a primeira vez que vi você, não me lembro quando, não me lembro onde. Hoje havia calma, entende? Eu acho que as coisas que ficam fora da gente, essas coisas como o tempo e o lugar, essas coisas influem muito no que a gente vai dizer, entende? Pois por fora, hoje, havia chuva e um pouco de frio: essa chuva e esse frio parecem que empurram a gente mais pra dentro da gente mesmo, então as pessoas ficam mais lentas, mais verdadeiras, mais bonitas. Hoje eu estava assim: mais lento, mais verdadeiro, mais bonito até. Hoje eu diria qualquer coisa se você telefonasse. Por dentro também eu estava preparado para dizer, um pouco porque eu não agüento mais ficar esperando toda hora você telefonar ou aparecer...
Aos poucos vamos substituindo expressões fatais como “não resistirei” por outras mais mansas, como “sei que vai passar”.
Então chegou o outro. Primeiro por telefone, que era amigo-de-um-amigo-que-estava-viajando-e-recomendara-que-olhasse-por-ele. Se precisava de alguma coisa, se estava mesmo bem entre aspas. Tão irritante ser lembrado da própria fragilidade no ventre do janeiro tropical, quase expulso do Paraíso que a duras penas conquistara desde sua temporada particular no Inferno, teve o impulso bruto de ser farpado com o outro. A voz do outro. A invasão do outro. A gentil crueldade do outro, que certamente faria parte do outro Lado. Daquela falange dos Cúmplices Complacentes, vezenquando mais odiosa que os Sórdidos Preconceituosos, compreende? Mas havia algo — um matiz? — nessa voz desse outro que o fazia ter nostalgia boa de gargalhar rouco jogando conversa fora com outras pessoas de qualquer lado — que não havia lados, mas lagos, desconfiava vago —, como desde antes daquele agosto desaprendera de fazer. Ah, sentar na mesa de um bar para beber nem que fosse água brahma light cerpa sem álcool (e tão chegado fora aos conhaques) falando bem ou mal de qualquer filme, qualquer livro, qualquer ser, enquanto navios pespontavam a bainha verde do horizonte e rapazes morenos musculosos jogassem eternamente futebol na areia da praia com suas sungas coloridas protegendo crespos pentelhos suados, peludas bolas salgadas. Respirou fundo, lento, sete vezes perdoando o outro. E marcou um encontro.
Você diz que ama o vento, mas você fecha as janelas quando o vento sopra. É por isso que eu tenho medo. Você também diz que me ama…
Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Você sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.
Talvez isso mude. Talvez você entre na minha vida sem tocar a campainha e me sequestre de uma vez. Talvez você pule esses três ou quatro muros que nos separam e segure a minha mão, assim, ofegante, pra nunca mais soltar. Ou talvez eu só precise de férias, um porre e um novo amor; Porque no fundo eu sei que a realidade que eu sonhava afundou num copo de cachaça e virou utopia.
✨ Às vezes, tudo que precisamos é de uma frase certa, no momento certo.
Receba no seu WhatsApp mensagens diárias para nutrir sua mente e fortalecer sua jornada de transformação.
Entrar no canal do Whatsapp
