Nao Existe o Belo e o Feio
Metade
"Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo..."
Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.
Prometi não tentar entender e apenas sentir, sentir mais uma vez, sentir apenas a falta de lamber suas coxas, a pele lisa, o joelho, a nuca, o umbigo, a virilha, as sujeiras. Sinto falta do mistério que era amar a última pessoa do mundo que eu amaria.
[Periférico]
O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.
Não importa quem somos. O mais importante é que somos.
O homem traz o universo inteiro dentro de si e a a melhor foma de vivenciar o mistério do mundo é mergulhar em si mesmo.
Odeio pensar demais. Querer demais. Me importar demais. Sentir demais. E não ter nada "demais" de volta pra mim.
Eu sou uma completa incógnita.
Tal dia quero, tal dia não quero.
Era um dêsses sentimentos puros que não embaraçam a marcha da vida, que se conservam porque são raros, cuja perda ocasionaria dor maior que o regojizo da posse.
Eu irei lhe dizer o que eu irei fazer e o que eu não irei fazer. Eu não servirei aqueles no qual não acredito mais, mesmo que se entitulem minha casa, minha cidade natal ou minha igreja: e eu tentarei me expressar [viver] de uma forma mais livre e completa possível [através da arte], usando em minha defesa as únicas armas que eu me permito usar - silêncio, exílio e habilidade.
Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida mas no "além" - no nada - tira-se da vida o seu centro de gravidade.
A vida era muito dura. Não chegávamos a passar fome ou frio ou nenhuma dessas coisas. Mas era dura porque era sem cor, sem ritmo e também sem forma. Os dias passavam, passavam e passavam, alcançavam as semanas, dobravam as quinzenas, atingiam os meses, acumulavam-se em anos, amontoavam-se em décadas — e nada acontecia. Eu tinha a impressão de viver dentro de uma enorme e vazia bola de gás, em constante rotação.
Ninguém gosta de ser metido a besta ou a moralista. Eu também não gosto. No entanto, já não era a mesma coisa, nem em meu coração, nem em meu espírito. Quando uma antiga amizade não se refaz por completo, é na cabeça que a gente sente mais. Mas de que servem estas palavras? A coisa toda era muito mais complicada do que eu pude imaginar e jamais conseguirei explicá-la direito.
O que é preciso é não ir demais contra a onda. A gente faz como quando toma banho de mar: procura subir e descer com a onda. Isso é uma forma de lutar: esperar, ter paciência, perdoar, amar os outros. E cada dia aperfeiçoar o dia. Tudo isso está parecendo idiota... Mas até que não é.
Secaram as sementes no silêncio da rocha e mineral. As palavras que não chegamos a gritar, as lágrimas retidas, as pragas que se engolem, a frase que se encurta, o amor que matamos, tudo isso transformado em minério magnético, em turmalina, em ágata, o sangue congelado em cinábrio, sangue calcinado tornado galena, oxidado, aluminizado, sulfatado, calcinado, o brilho mineral de meteoros mortos e sóis exaustos numa floresta de árvores secas e desejos mortos.
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
(in O Guardador de Rebanhos)
