Momentos Alegria Fernando Pessoa
VI
Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.
Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...
Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distância de mim vi...
Eu próprio sou aquilo que perdi...
E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glória marginal
Os girassóis do império que morri...
XIII - Emissário de um rei desconhecido
Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
Mas para que me comparo com uma flor, se eu sou eu
E a flor é a flor?
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhámos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.
Guardo ainda, como um pasmo
Em que a infância sobrevive,
Metade do entusiasmo
Que tenho porque já tive.
Quase às vezes me envergonho
De crer tanto em que não creio.
É uma espécie de sonho
Com a realidade ao meio.
Girassol do falso agrado
Em torno do centro mudo
Fala, amarelo, pasmado
Do negro centro que é tudo.
O inexplicável horror
De saber que esta vida é verdadeira.
Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,
E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te.
Se o nosso espírito pudesse compreender a eternidade ou o infinito, saberíamos tudo. Até podermos entender esse fato, não podemos saber nada.
A ignorância é a verdadeira inocência. O maior pensador é o maior debochado.
A vaidade é a confiança no efeito do nosso valor, o orgulho a confiança em que temos valor.
Compreendo que um homem seja orgulhoso; não compreendo que mostre sê-lo.
Age como se não houvesse Deus, lembrando-te porém que Ele existe.
Goethe diz, com verdade, que o Deus de cada homem é como esse homem; não será então o Deus do maior homem o maior Deus?
Deus é racionalista, porque Deus é mesmo Razão.
Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.
“Não importa se a estação do ano muda. Conserva a vontade de viver, não se vai a parte alguma sem ela. “
Fiquei doido, fiquei tonto...
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Aconcheguei-a em meus braços,
Embriaguei-me de abraços...
Fiquei tonto e foi assim...
Sua boca sabe a flores,
Bonequinha, meus amores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me,
E tantos beijos p'ra dar-me
Quantos eu lhe dou também.
Ah que tontura e que fogo!
Se estou perto dela, é logo
Uma pressa em meu olhar,
Uma música em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a querer achar.
Dá-me beijos, dá-me tantos
Que, enleado nos teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida,
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.
Não descanso, não projecto
Nada certo, sempre inquieto
Quando te não beijo, amor,
Por te beijar, e se beijo
Por não me encher o desejo
Nem o meu beijo melhor.
Mais do que outras artes, são a Literatura e a música propícias às subtilesas de um psicólogo. As figuras de romance são - como todos sabem - tão reais como qualquer de nós. Certos aspectos de som tem uma alma alada e rápida, mas suscetíveis de psicologia e Sociologia porque - bom é que os ignorantes o saibam - as sociedades existem dentro das cores, dos sons, das frases, e há regimes e revoluções, reinados, políticas e - há-os em absoluto e sem metafísica - no conjunto instrumental de sinfonias, no todo organizado das novelas, nos metros quadrados de um quadro complexo, onde gozam, sofrem e misturam as atitudes coloridas de guerreiros, de amorosos ou de simbólicos.
Quando se quebra uma chávena da minha coleção japonesa, eu sonho que mais do que um descuido das mãos de uma criada tenha sido a causa, ou tenham estado os anseios das figuras que habitam as curvas daquela de louça; a resolução tenebrosa de suicídio que as tomou não se causa espanto: serviram-se da criada, como um de nós de um revólver. Saber Isto é estar além da ciência moderna, e com que precisão eu sei disso.
Diário de Bernardo Soares - pag. 341
Fernando Pessoa - Livro do desassossego
Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais. [...]
Não mais, não mais, e desde que saíste
Desta prisão fechada que é o mundo,
Meu coração é inerte e infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.
Porque há em nós, por mais que consigamos
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
Um desejo de termos companhia –
O amigo como esse que a falar amamos
