Coleção pessoal de Filigranas

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A realidade é o gesto visível das mãos invisíveis de Deus.

Um homem da Idade Média condenaria totalmente o nosso estilo de vida atual como algo muito mais cruel, terrível e bárbaro. Cada época, cada cultura, cada costume e tradição têm o seu próprio estilo, tem sua delicadeza e sua severidade, suas belezas e crueldades, aceitam certos sofrimentos como naturais, sofrem pacientemente certas desgraças. O verdadeiro sofrimento, o verdadeiro inferno da vida humana reside ali onde se chocam duas culturas ou duas religiões... Há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda a salvação e inocência ficam perdidos para ela.
(O Lobo da Estepe)

Nós temos hoje gente com dinheiro. Isso em si mesmo não é mau. Mas esses endinheirados não são ricos. Ser rico é outra coisa. Ser rico é produzir emprego. Ser rico é produzir riqueza. Os nossos novos-ricos são quase sempre predadores, vivem da venda e revenda de recursos nacionais.
(E se Obama fosse africano?)

Cidadãos ativos:
Não se pode governar um país como se a política fosse um quintal e a economia fosse um bazar. Ao avaliar um regime de governação precisamos, no entanto, de ir mais fundo e saber se as questões não provêm do regime mas do sistema e a cultura que esse sistema vai gerando. Pode-se mudar o governo e tudo continuará igual se mantivermos intacto o sistema de fazer economia, o sistema que administra os recursos da nossa sociedade. Nós temos hoje gente com dinheiro. Isso em si mesmo não é mau. Mas esses endinheirados não são ricos. Ser rico é outra coisa. Ser rico é produzir emprego. Ser rico é produzir riqueza. Os nossos novos-ricos são quase sempre predadores, vivem da venda e revenda de recursos nacionais.
Afinal, culpar o governo ou o sistema e ficar apenas por aí é fácil. Alguém dizia que governar é tão fácil que todos o sabem fazer até ao dia em que são governo. A verdade é que muitos dos problemas que nós vivemos resultam da falta de resposta nossa como cidadãos ativos. Resulta de apenas reagirmos no limite quando não há outra resposta senão a violência cega. Grande parte dos problemas resulta de ficarmos calados quando podemos pensar e falar.
(E se Obama fosse africano?)

A revolução dos bichos

O Major prosseguiu:
- Pouco mais tenho a dizer. Repito apenas: lembrai-vos sempre do vosso dever de inimizade para com o Homem e todos os seus desígnios. O que quer que ande sobre duas pernas é inimigo, o que quer que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
Lembrai-vos também de que na luta contra o Homem não devemos ser como ele. Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai-lhe os vícios. Animal nenhum deve morar em casas, nem dormir em camas, nem usar roupas, nem beber álcool, nem fumar, nem tocar em dinheiro, nem comerciar. Todos os hábitos do Homem são maus. E, principalmente, jamais um animal deverá tiranizar outros animais. Fortes ou fracos, espertos ou simplórios, somos todos irmãos. Todos os animais são iguais.
E agora, camaradas, vou contar-vos o sonho que tive na noite passada. Não sei o que significa. Foi um sonho sobre como será o mundo quando o homem desaparecer. Mas lembrou-me algo que havia muito eu esquecera. Há anos, quando eu ainda era leitãozinho, minha mãe e as outras porcas costumavam cantar uma antiga canção da qual só conheciam a melodia e as três primeiras palavras. Na minha infância aprendi a melodia, depois a esqueci. À noite passada, entretanto, ela me voltou à memória. O mais interessante é que me lembrei também dos versos - os quais, tenho certeza, foram cantados pelos animais de antanho, depois esquecidos por muitas gerações. Vou cantar essa canção, camaradas. Estou velho e minha voz é rouca, mas, quando vos houver ensinado a melodia, podereis cantá-la melhor do que eu. Chama-se 'Bichos da Inglaterra'.
O velho Major limpou a garganta e começou a cantar. De fato, a voz era roufenha, mas ele entoava bem, e a melodia era bem movimentada, algo entre "Clementina" e "La Cucaracha". Os versos diziam:

Bichos da Inglaterra e da Irlanda,
Daqui, dali, de acolá,
Escutai a alvissareira
Novidade que virá.

Mais hoje, mais amanhã,
O Tirano vem ao chão,
E os campos da Inglaterra
Só os bichos pisarão.

Não mais argolas nas ventas,
Dorsos livres dos arreios,
Freio e espora enferrujando
E relho em cantos alheios.

Riqueza incomensurável,
Terra boa, muito grão,
Trigo, cevada e aveia,
Pastagem, feno e feijão.

Lindos campos da Inglaterra,
Ribeiros com águas puras,
Brisas leves circulando,
Liberdade nas alturas.

Lutemos por esse dia
Mesmo que nos custe a vida.
Gansos, vacas e cavalos,
Todos unidos na lida.

Bichos da Inglaterra e da Irlanda,
Daqui, dali, de acolá,
Levai esta minha mensagem
E o futuro sorrirá.

O canto levou a bicharada à mais extrema excitação. Mesmo antes de o Major chegar ao fim, já haviam começado a cantar por conta própria. Até os mais parvos pegaram a melodia e algumas palavras; os mais vivos, tais os porcos e os cachorros, decoraram a canção em minutos. Então, depois de algumas tentativas, a granja toda atacou "Bichos da Inglaterra" em potente uníssono. As vacas mugiam a canção, os cachorros latiam-na, as ovelhas baliam-na, os cavalos relinchavam-na, os patos grasnavam-na. Foi tal o enlevo, que cantaram cinco vezes corridas, de ponta a ponta, e teriam cantado a noite toda se não fossem interrompidos.

O que hoje existe não é comunidade, é simplesmente rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de intelectuais... E por que têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo.

Todos os homens buscavam a liberdade e a felicidade num ponto qualquer do passado, só de medo de ver erguer-se diante deles a visão da responsabilidade própria e da própria trajetória.

Esta é minha fraqueza, meu caro Sinclair, pois às vezes percebo que não deveria sentir tais desejos, que são um luxo e uma fraqueza. Seria mais digno e mais acertado estar simplesmente à disposição do destino, sem aspirações de qualquer ordem. Mas não posso, é a única coisa que não posso fazer. Talvez tu o consigas um dia. É muito difícil, é o único verdadeiramente difícil. Já sonhei em consegui-lo, mas não o consigo realizar, me dá medo. Não posso decidir-me a ficar tão desnudo e tão só em meio da vida; também eu sou um pobre cão fraco, que necessita de um pouco de calor e de alimento e gosta de sentir-se de vez em quando entre seus semelhantes. Aquele que verdadeiramente só quer seu destino já não tem semelhantes e se ergue solitário sobre a terra, tendo ao seu lado somente os gélidos espaços infinitos. (Demian)

A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro. Também se pode ser feliz assim; mas quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho da maioria. O caminho da maioria é fácil, o nosso é penoso. Caminhemos.
(Demian)

Não devemos temer nem julgar ilícito nada do que nossa alma deseja em nós mesmos. (Demian)

Não há porque te comparares com os demais, e se a natureza te criou para morcego, não deves aspirar a ser avestruz. Às vezes te consideras por demais esquisito e te reprovas por seguires caminhos diversos dos da maioria. Deixa-te disso. Contempla o fogo, as nuvens, e quando surgirem presságios e as vozes soarem em tua alma, abandona-te a elas sem perguntares se isso convém ou é do gosto do senhor teu pai ou do professor ou de algum bom deus qualquer. Com isso só conseguimos perder-nos, entrar na escala burguesa e fossilizar-nos. (Demian)

Quando me comparava com os demais, sentia-me muitas vezes orgulhoso e satisfeito comigo mesmo, e em outras tantas deprimido e humilhado. Ora me acreditava um verdadeiro gênio, ora fraco do juízo. Não me era possível compartilhar a vida e as alegrias dos outros rapazes de minha idade, e às vezes reprovava asperamente o meu isolamento e sentia profunda tristeza, crendo-me definitivamente afastado de todos os meus semelhantes, com todas as portas da vida fechadas irrevogavelmente para mim. (Demian)

Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas.
(Demian)

A maioria das pessoas vive também em sonhos, mas não nos próprios, e aí é que está a diferença.
(Demian)

Há, por exemplo, entre as mariposas, certa espécie noturna da qual as fêmeas são em número muito mais reduzido do que os machos. As mariposas se reproduzem da mesma maneira que todos os outros insetos: o macho fecunda a fêmea, e esta põe ovos. Quando se captura uma dessas fêmeas (e numerosos naturalistas já comprovaram o fato), os machos vão dar ao lugar onde ela se encontra prisioneira, depois de voarem vários quilômetros de distância, viajando horas e horas através da noite. Presta atenção! A vários quilômetros de distância os machos sentem a presença da única fêmea existente nas imediações. Tentou-se buscar uma explicação para o fato, mas é muito difícil de explicar. Talvez os machos tenham o sentido do olfato extraordinariamente desenvolvido, como os bons cães de caça, que conseguem achar e seguir um rastro imperceptível. Compreendes? A Natureza está cheia de fatos como este, que ninguém consegue explicar. Mas imagino que se, entre essas mariposas, as fêmeas fossem tão freqüentes quanto os machos, estes talvez não tivessem um olfato tão fino. Se o têm é porque se viram na necessidade de exercitá-lo a tal ponto e a intensificar sua sensibilidade. Quando um animal ou um homem orienta toda a sua atenção e toda a sua força de vontade para determinado fim, acaba por consegui-lo. O mesmo acontece com o que antes dizíamos. Se observarmos uma pessoa com suficiente atenção, acabaremos por saber mais a seu respeito do que a própria pessoa.
(...) É necessário perguntar-se sempre, duvidar sempre. Mas a coisa é muito simples. Se uma dessas mariposas noturnas de que falamos pretendesse orientar toda a sua vontade em direção a uma estrela ou a outro fim semelhante, é claro que nada conseguiria. Mas nem sequer pretende isso. Busca apenas o que tem para ela um sentido e um valor, algo que lhe é necessário e de que não pode prescindir. E é então precisamente quando consegue também o inacreditável: desenvolver um sexto sentido, que só ela possui entre todos os animais. Nós, os homens, temos um campo de ação muito mais vasto e interesses mais amplos do que os animais. Mas também nós nos achamos inscritos num círculo relativamente pequeno e não conseguimos ultrapassá-lo. Posso imaginar muitas coisas, imaginar, por exemplo, que meu maior desejo seria chegar ao Pólo Norte ou algo semelhante; mas só poderei querer isso com suficiente intensidade e realizar esse desejo quando ele realmente existir em mim e todo o meu ser se achar penetrado por ele. Quando isso acontece, quando intentas algo que te é ordenado de dentro do teu próprio ser, acabas por consegui-lo e podes atrelar tua vontade como se fosse um animal de tiro. Se eu me esforçasse agora no sentido de que, por exemplo, o nosso pároco não usasse óculos, não haveria de conseguir nada. Seria apenas um jogo. Mas, quando no outono passado, surgiu em mim o firme propósito de mudar de lugar na classe, tudo aconteceu maravilhosamente. Logo apareceu um aluno, que até então estivera doente e cujo nome começava por uma letra anterior à inicial do meu, e como alguém devesse dar-lhe o lugar nos primeiros bancos, fui eu, desde logo, quem lhe cedeu o lugar, precisamente porque minha vontade já se encontrava preparada para aproveitar a primeira ocasião.
(Demian)

Se tem uma coisa que eu detesto nesse mundo são as festas obrigatórias em que as pessoas choram porque estão alegres, os fogos de artifício, as musiquinhas chocas, as grinaldas de papel de seda que não têm nada a ver com um menino que nasceu há 2 mil anos num estábulo indigente.
(Memória de minhas putas tristes)

Lendo 'Os idos de março' encontrei uma frase sinistra que o autor atribui a Júlio César: "É impossível não acabar sendo do jeito que os outros acreditam que você é". Não pude comprovar sua verdadeira origem na própria obra de Júlio César nem nas obras de seus biógrafos, de Suetônio a Carcopino, mas valeu a pena conhecê-la.
(Memórias de minhas putas tristes)

Teu Nome

Teu nome, Maria Lúcia
Tem qualquer coisa que afaga
Como uma lua macia
Brilhando à flor de uma vaga.
Parece um mar que marulha
De manso sobre uma praia
Tem o palor que irradia
A estrela quando desmaia.
É um doce nome de filha
É um belo nome de amada
Lembra um pedaço de ilha
Surgindo de madrugada.
Tem um cheirinho de murta
E é suave como a pelúcia
É acorde que nunca finda
É coisa por demais linda
Teu nome, Maria Lúcia…

O verme

Existe uma flor que encerra
Celeste orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mão benéfica de um nume.

Um verme asqueroso e feio,
Gerado em lodo mortal,
Busca esta flor virginal
E vai dormir-lhe no seio.

Morde, sangra, rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flor o cálix inclina;
As folhas, leva-as o vento,

Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solidão...
Esta flor é o coração,
Aquele verme o ciúme.

Como são desajeitados os seres humanos quando comparados com os animais! Veja, por exemplo, os macacos. Sem nenhum treinamento especial, eles tirariam medalhas de ouro na ginástica olímpica. E os saltos das pulgas e dos gafanhotos! Já prestou atenção na velocidade das formigas? Mais velozes a pé, proporcionalmente, que os bólidos de Fórmula Um! O voo dos urubus, os buracos dos tatus, as teias das aranhas, as conchas dos moluscos, a língua saltadora dos sapos, o veneno das taturanas, os dentes dos castores...