Textos de Clarice Lispector

Cerca de 354 textos de Clarice Lispector

Se não buscasse um deus exterior terminaria por endeusar-se, por explorar sua própria dor, amando seu passado, buscando refúgio e calor em seus próprios pensamentos, então já nascidos com uma vontade de obra de arte e depois servindo de alimento velho nos períodos estéreis. Havia o perigo de se estabelecer no sofrimento e organizar-se dentro dele, o que seria um vício também e um calmante.

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

(...) estava permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido era cheio de erros a corrigir. Não, não era para irritar o professor que eu não estudava; só tinha tempo de crescer. O que eu fazia para todos os lados, com uma falta de graça que mais parecia o resultado de um erro de cálculo: as pernas não combinavam com os olhos, e a boca era emocionada enquanto as mãos se esgalhavam sujas – na minha pressa eu crescia sem saber para onde.

Clarice Lispector
A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho do conto Os desastres de Sofia.

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‎Não é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso, entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.

Inserida por alines2

Vi, sim. Vi, e me assustei com a verdade bruta de um mundo cujo maior horror é que ele é tão vivo que, para admitir que estou tão viva quanto ele - e minha pior descoberta é que estou tão viva quanto ele - terei que alçar minha consciência de vida exterior a um ponto de crime contra a minha vida pessoal.

Inserida por pandavonteese

Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escadalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. [...]

Inserida por beamorim

Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo. E tornar-se primário a ponto de dividir as pessoas em boas e más. A hora da sobrevivência é aquela em que a crueldade de quem é vítima é permitida, a crueldade e a revolta.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica É preciso também não perdoar.

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Inserida por analuisabq

“o que tem me perturbado intimamente é que as coisas do mundo chegaram para mim a um certo ponto em que eu tenho que saber como encará-las, quero dizer, a situação da guerra, a situação das pessoas, essas tragédias. Sempre encarei com revolta. Mas ao mesmo tempo sinto necessidade de fazer alguma coisa, sinto que não tenho meios. Você diria que eu tenho, através do meu trabalho. Eu tenho pensado muito nisso e não vejo caminho, quer dizer, um caminho verdadeiro.”

Inserida por Emilize

Só depois de viver mais ou melhor, conseguirei a desvalorização do humano, dizia-lhe Joana às vezes. Humano - eu. Humano - os homens individualmente separados. Esquecê-los porque com eles minhas relações apenas podem ser sentimentais. Se eu os procuro, exijo ou dou-lhes o equivalente das velhas palavras que sempre ouvimos, "fraternidade", "justiça". Se elas tivessem um valor real, seu valor não estaria em ser cume, mas base de triângulo. Seriam a condição e não o fato em si. Porém terminam ocupando todo o espaço mental e sentimental exatamente porque são impossíveis de se realizar, são contra a natureza. São fatais, apesar de tudo, no estado de promiscuidade em que se vive. Nesse estado transforma-se o ódio em amor, que nunca passa na verdade de procura de amor, jamais obtido senão em teoria, como no cristianismo."

Inserida por thaseries

A cruz deles é esquecer-se de sua própria dor. É nesse esquecer-se que acontece então o fato mais essencialmente humano, aquele que faz de um homem a humanidade: a dor pessoal adquire uma vastidão em que os outros todos cabem e onde se abrigam e são compreendidos; pelo que há de amor na renúncia da dor pessoal, os quase mortos se levantam.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Lembrança de um homem que desistiu.

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Inserida por DAlma

É bom. Sobretudo porque a mulher sabe que está sendo bom para ele: é depois de grandes jornadas e de grandes lutas que ele enfim compreende que precisa se ajoelhar diante da mulher. E, depois, é bom porque a cabeça do homem fica perto dos joelhos da mulher e perto de suas mãos, no seu colo, que é sua parte mais quente. E ela pode fazer o seu melhor gesto: nas mãos, que ficam a um tempo fremenets e firmes, pegar aquela cabeça cansada que é fruto entre seu e dela.

Inserida por thaseries

Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Atualidade do ovo e da galinha (II).

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Inserida por thaseries

A trama do romance: a corajosa luta pela inserção na vida que não é a de herói, de santo ou de homem, que é a vida anônima, de ser nada e ninguém, coisa neutra, mas núcleo e vida, configurado na espécie animal arcaica, onde todos se unem em plasma de "proteína pura", que, apesar de tantos séculos e de tantos pesos e castigos, ainda resiste, atual.

Inserida por natxalinha

' Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a realidade é mesmo que nada existiu?! quem sabe nada aconteceu? Só posso compreender o que acontece mas só acontece o que eu compreendo - que sei do resto? o resto nada existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uam forma? Uma visão contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa - a visão de uma carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes - então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada. '

Inserida por natxalinha

¬ Cedo fui obrigada a reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca inteligênciam, e eu desdizia caminho. Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro de minha pele. Como pois inaugurar agora em mim o pensamento? e talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão. ¬

Inserida por natxalinha

' Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada - então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma amadurece, a nebulosa de fogo que se esfria na terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma. '

Inserida por natxalinha

Não compreendo o que vi. E nem mesmo sei se vi, já que meus olhos terminaram não se diferenciando da coisa vista. Só por inesperado tremor de linhas, só por uma anomalia na continuidade ininterrrupta de minha civilização, é que por um àtimo experimentei a vivificadora morte. A fina morte que me fez manusear o proibido tecido da vida. È proibido dizer o nome da vida. E eu quase disse. Quase não me pude desembaraçar de seu tecido, o que seria a destruição dentro de mim de minha época.

Inserida por natxalinha

Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa. Minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai. Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Inserida por natxalinha

Eu vi. Sei que vi porque não dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi - porque não entendo. Sei que vi - porque para nada serve o que vi. Escuta, vou ter que falar porque não sei o que fazer de ter vivido. Pior ainda: não quero o que vi. O que vi arrebenta a minha vida diária. Desculpa eu te dar isto, eu bem queria ter visto coisa melhor. Toma o que vi, livra-me de minha inútil visão, e de meu pecado inútil.

Inserida por natxalinha

" Eu, corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo fora de mim - eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco da parede - sou cada pedaço infernal de mim - a vida em mim é tão insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os pedaços continuarão estremecendo e se mexendo. Sou o silêncio gravado numa parede, e a borboleta mais antiga esvoaça e me defronta: a mesma de sempre. De nascer até morrer é o que eu me chamo de humana, e nunca propriamente morrerei. "

Inserida por natxalinha

Fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, (...) faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, (...) faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta (...)

Clarice Lispector
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Inserida por tham