Alicia Salvaterra
Joãozinho
Tadinho,
Tão anão,
E já se meteu em confusão.
Joãozinho não sabia falar, nem dançar,
Só sabia chorar,
E a mãe, pobrezinha,
Só ouvia, sem saber o que fazer.
Joãozinho não sabia ler, nem escrever,
Mas, sem perceber,
Não pôde nem aprender.
Joãozinho nem sabia o que era “poder”,
Mas não teve tempo de aprender,
Pois os homens fardados,
Não quiseram deixar-lhe saber.
Joãozinho nem sabia o que era um canhão,
nem quem tinha razão,
Mas sem querer,
morreu sem saber.
Havia um miúdinho,
sem nome nem passado,
nu, esquecido,
andava sozinho pela rua,
escaldante de tão gelada,
como sombra sem dono.
Tinha um corpo
feito de cortes e pedras,
parecia ter sido mastigado
por calçadas com dentes.
Era um pobre coitado,
seguido sempre
por um cão magro,
tão sofrido,
igual a ele.
Sentavam-se no pedregulho duro
à espera de um fim.
O miúdo, paciente,
esperava que o cão partisse,
descansasse no reino dos cães,
para então poder matá-la —
a fome.
O cão, por sua vez,
até aprendera a contar horas,
de tanto esperar que o miúdo,
vermelho de dor,
fechasse os olhos
e dormisse de vez.
Assim, ele saciaria a fome
com lógica cruel,
mas destino cego.
O cão não ladrava,
e não sabia truques,
era inútil.
O miúdo, por sua vez,
também não sabia nada,
nada lhe ensinaram.
Era inocente,
imprestável,
invisível ao mundo.
Ambos só serviam um ao outro,
à ninguém mais.
Certo momento...
o miúdo, já derrotado,
deitou a cabeça no granito
para poder descansar o seu corpo cansado,
o cão, desesperado,
cravou como os seus dentes podres
no peito nu do miúdo,
com dó e piedade,
pois isso ainda lhe restava.
Mas morreu também,
porque o miúdo,
coitado,
não tinha carne sequer
para alimentar um cão.
Sinto-me despejada,
como lixo da humanidade.
É coisa minha,
sempre foi.
Sempre senti-me assim.
Devo ter cometido o pecado dos piores pecados,
porque,
em todos os locais pertencentes,
eu não pertenço.
Foi sempre assim,
nunca pude pertencer a lugar nenhum.
Será maluquisse minha?
Será as inúmeras expectativas que puz em locais,
nos quais ao meu ver eram pertencentes?
Ou será os próprios lugares que já eram pertencidos o suficiente para me pertencer?
É tudo tão confuso…
Eu sou confusa.
Que incompetência a minha...
Que incompetência a minha ter nascido num berço de madeira.
Que incompetência a minha ter roubado do peito uma mamadeira.
Que incompetência a minha ser morrida de rasteira.
Que incompetência a minha não ser herdeira.
Não sabia se estava exausta ou triste. Já não distinguia uma coisa da outra. Desliguei-me tanto de mim mesma por tanto tempo que já nem sabia definir as minhas próprias emoções — Os meus próprios eus. Agora, limitava-me ao ser. Eu era, sem saber o que era. Apenas era, porque sim. Reduzia-me a isso: Eu sou. Sou o quê? Sou alguém. E fui sendo até ser o que sou agora.
Sei que sou alguém pois tenho consciência, mas sei também, que ao mesmo tempo, não sou um alguém.
Sem saber falar outra coisa, acabava-me por inclinar sempre ao sim. Nem não, nem talvez. Era sempre sim. Mesmo que fosse restritamente a vez do não ou do talvez, sem querer acabava por deixá-lo sair de mim.
Não sei definir-me, nunca o procurei e por enquanto, prefiro não o fazer. Se caso o faça, transformo-me num só, limito-me. Torno-me em alguém que, durante a minha vida, nunca conheci.
Estas são as pessoas mais felizes; as que não sabem de nada, tudo é lindo para elas. Que sonho. Queria ser assim, ignorante e tola.
Não sei definir-me, nunca procurei fazê-lo e por enquanto, prefiro não o fazer. Se caso o faça, transformo-me num só, limito-me.