Trechos Clarice Lispector
Só, por exemplo, olhando para o dia passado é que tinham a impressão de ter – de algum modo e por assim dizer à revelia deles, e por isso sem mérito – a impressão de ter vivido. (...)
Não era uma vida de sonho, pois este jamais os orientara. Mas de irrealidade. Embora houvesse momentos em que de repente, por um motivo ou por outro, eles afundassem na realidade. E então lhes parecia ter tocado num fundo de onde ninguém pode passar. (...)
Essa maneira de caber inteiramente no que existia e de tudo ficar tão nitidamente aquilo mesmo – era intolerável. Mas, quando passava, era como se a esposa tivesse bebido de um futuro possível. Aos poucos o futuro dessa mulher passou a se tornar algo que ela trazia para o presente, alguma coisa meditativa e secreta. (...)
Sonhadores, eles passaram a sofrer sonhadores, era heroico suportar. Calados quanto ao entrevisto por cada um, discordando quanto à hora mais conveniente de jantar, um servindo de sacrifício para o outro, amor é sacrifício.
Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal – alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na gelidez que, líquida, se põe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido. (...)
Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas – ah nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas – mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. As vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.
Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ainda menino habituou-se a saber, e dava piscadelas que, ao franzirem o nariz, deslocavam os óculos. E que a chave não estava com ninguém, isso ele foi aos poucos adivinhando sem nenhuma desilusão, sua tranquila miopia exigindo lentes cada vez mais fortes.
Por estranho que parecesse, foi exatamente por intermédio desse estado de permanente incerteza e por intermédio da prematura aceitação de que a chave não está com ninguém – foi através disso tudo que ele foi crescendo normalmente, e vivendo em serena curiosidade.
O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então – para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa – eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a ideia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo.
Ah viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não para, viver parece ter sono e não poder dormir – viver é incômodo. Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito.
(...) sinto de vez em quando que sou o personagem de alguém.
Até mesmo extirpar os próprios defeitos pode ser um risco — jamais se sabe qual deles sustenta, em silêncio, toda a estrutura do nosso ser.
Sou terrivelmente, essencialmente mortal.
– Clarice, a partir de qual momento você efetivamente decide assumir a carreira de escritora?
– Eu nunca assumi.
– Por quê?
– Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade.
– Se você não pudesse mais escrever você morreria?
– Eu acho que, quando não escrevo, estou morta. (...) É muito duro, esse período entre um trabalho e outro, e ao mesmo tempo é necessário para haver uma espécie de esvaziamento para poder nascer alguma outra coisa, se nascer. É tudo tão incerto…
– No seu entender, qual o papel do escritor brasileiro hoje?
– De falar o menos possível.
– Isso ainda acontece, de você produzir alguma coisa e rasgar?
– Eu deixo de lado... não, eu rasgo sim.
– É produto de reflexão ou deuma emoção?
– Raiva, um pouco de raiva.
– De quem?
– De mim mesma.
– Por quê, Clarice?
– Sei lá, estou meio cansada.
– Do quê?
– De mim mesma.
– Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?
– Bom, agora eu morri, mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.
Ângela é ainda um casulo fechado, como se eu ainda não tivesse nascido, enquanto eu não abrir em metamorfose, Ângela será minha. Quando eu tiver forças de ficar sozinho e mudo – então soltarei para sempre a borboleta do casulo.
Eu tinha que ficar realmente em guarda, porque minha tendência é gostar das pessoas.
Parece que esperança não tem olhos (...), é guiada pelas antenas.
Qualquer que tivesse sido o crime dele [Mineirinho], uma bala bastava. O resto era vontade de matar, era prepotência.
Os suicidas muitas vezes se matam porque têm medo de morrer. Não suportam a tensão crescente da vida e da espera do pior – e se matam para se verem livres da ameaça.
Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho... o de nada mais fazer.
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