Trechos Clarice Lispector
Ou estarei apenas adiando o começar a falar? por que não digo nada e apenas ganho tempo? Por medo. É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto. É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale. Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar. Por medo? E porque não tenho uma palavra a dizer.
E "eu te amo" era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé.
Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável. Mas ah, a falta de sede.
Não havia senão faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem pontas salientes por onde serem pinçadas e extirpadas.
Vê, meu amor, vê como por medo já estou organizando, vê como ainda não consigo mexer nesses elementos primários do laboratório sem logo querer organizar a esperança. É que por enquanto a metamorfose de mim em mim mesma não faz nenhum sentido. É uma metamorfose em que perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu – só tenho o que sou. E agora o que sou? Sou: estar de pé diante de um susto. Sou: o que vi. Não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com os seus planetas e baratas. Eu, que antes vivera de palavras de caridade ou orgulho ou de qualquer coisa. Mas que abismo entre a palavra e o que ela tentava, que abismo entre a palavra amor e o amor que não tem sequer sentido humano – porque – porque amor é a matéria viva. Amor é a matéria viva?
Sei que as coisas são complicadas. Mas são ao mesmo tempo simples. Elas se complicam à medida em que se tem medo da simplicidade – porque essa simplicidade seja o fato em si, a verdade.
Deus, o que nos prometeis em troca de morrer? Pois o céu e o inferno nós já os conhecemos - cada um de nós em segredo quase de sonho já viveu um pouco do próprio apocalipse. E a própria morte.
Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
E então eu soube: pertencer é viver.
Entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem.
Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em segredo até que a morte do corpo venha, e alguém, adivinhando, diga: esta, esta viveu.
Eu tenho medo do ótimo e do superlativo. Quando começa a ficar muito bom eu ou desconfio ou dou um passo para trás.
Tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre.
O que os outros recebem de mim reflete-se então de volta para mim, e forma a atmosfera do que se chama: eu.
Por que ela estava tão ardente e leve, como o ar que vem do fogão que se destampa?
Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo.
Eu quero o pensar-sentir hoje e, não, tê-lo apenas tido ontem ou ir tê-lo amanhã. Tenho certa pressa em sentir tudo.
Há um tipo de choro bom e há outro ruim. O ruim é aquele em que as lágrimas correm sem parar e, no entanto, não dão alívio. Só esgotam e exaurem. (...)
Homem chorar comove. Ele, o lutador, reconheceu sua luta às vezes inútil. Respeito muito o homem que chora. Eu já vi homem chorar.
Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos.
Não, não te assustes! certamente o que me havia salvo até aquele momento da vida sentimentizada de que eu vivia, é que o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente. Só por isso é que, como pessoa falsa, eu não havia até então soçobrado sob a construção sentimentária e utilitária: meus sentimentos humanos eram utilitários, mas eu não tinha soçobrado porque a parte coisa, matéria do Deus, era forte demais e esperava para me reivindicar.
Eu acho que, quando não escrevo, estou morta.