Texto Pontos Autor Luis Fernando Verissimo
MINHA NOIVA NEGRA
Esperei muito
Este dia desejado.
Pra ficar de teu lado.
Sermos felizes.
Sem cicatrizes.
Nossa minha ‘’NEGA’’
Você ta muito linda
Rosto suave
Sem entrave.
Lábios harmoniosos.
Lindos sedosos
Chegou nosso dia
La fora
‘’’O SOL ERRADIA’’
‘’MINHA NOIVA NEGRA
PÃO DE ILUSÃO
"Dona Maria vai à mesma padaria há 43 anos e alguns dias. Essa data traz a agonia inventada pela espontaneidade da vetustez. Alguns móveis da padaria, ao longo da modernidade, foram trocados por mármore gelado e mogno lustroso. Os donos do estabelecimento ainda não foram trocados. O padeiro continua com um semblante frio - tanto quanto o mármore - e a balconista, com a sua pele lustrada pela temperatura dos pães, estende dedos grossos para devolver o troco. Em todos esses anos, os formais comprimentos nunca foram trocados por nenhuma amizade com túnica mais interna. Dona Maria é apenas mais uma velha assídua que sempre compra o mesmo bolo de trigo. Os que estão na padaria, também são apenas os mesmos, apenas são, sem muitas túnicas internas, são superficialmente apenas duas almas sem recheio que Dona Maria vê ao longo de seus 43 anos. Por casualidade, há muitos calendários, Dona Maria vê os mesmos rostos, os mesmos objetos, come as mesmas comidas, veste os mesmos vestidos que cheiram a naftalina. Diga-nos, Dona Maria, diga como era o sol naquela década. Diga-nos, diga com dignidade como as pessoas se trajavam, nos diga sobre os programas televisivos, diga-nos se os corpos eram em preto e branco, diga se havia medo de ter esperança. Conte-nos, conte sobre hoje, conte sobre excesso de cores. Conte-nos como contas as moedas do cofre que guardas em cima da geladeira, qual valor tem a mudança. Para Dona Maria, a dinâmica do tempo não lhe foi muito generosa. Dona Maria aguarda, no cume de sua demência, que nada possa mudar, pois envelhecer é um fenômeno agudo, que esculpe pés de galinha e rugas sem muita cortesia estética. E ela inventa todos os dias mais um dia de monotonia, para que não alcance o desespero de um dia ter de que se reinventar. Dona Maria sabe que a eternidade não se vende em nenhuma padaria, mas que a alegria da ilusão lhe traz a sensação de poder ter desenhar a vida que se quer levar."
BEM-ME-QUER(O)
De todos os pesares
O mais leve é saber
Que equilibro soluço e canto
Enquanto despenteio flores
bem-me-quer, mal-me-quer
bem-me-quer, mal-me-quer
De todos os panos
Torço e contorço os fios
Para que escorram em minha pálpebra
Encantos de mais uma história
bem-me-quer, mal-me-quer
bem-me-quer, mal-me-quer
Como posso despentear flores
Se em minhas palmas
Cheia de mapas desertos
Eu tenho é dente-de-leão?
bem-me-quer, mal-me-quer
bem-me-quer, mal-me-quer
Se bem me queres
Mal consegues saber
Que bem lhe peço
Ao orixá que tu tanto rogas
Que lhe perdoe
Por ser mais pedra
Do que mar
bem-me-quer, mal-me-quer
bem-me-quer, mal-me-quer
E as minhas pétalas
Que caem tanto quanto os teus fios
Mordem os endereços de nossos abraços
Desertando panos e lençóis de algodão
E as pedras são as mesmas
Ainda que vento só sopre o nunca e nucas
Só se basta o que foi bastante
Seguro em minhas aspas e grito:
bem-lhe-queira, bem-me-quero
bem-me-queira, bem-lhe-quero
TRUCO
Troquei de roupa
Troquei os passos
Troquei figuras
Troquei os fatos
Troquei de olhos
Troquei de alma
Troquei de cores
Troquei de espelhos
Troquei de braços
Troquei palavras
Troquei de amores
Troquei de pecado
Troquei as bolas
Troquei
Truquei
Retruquei
Aos trocos e devoluções
Não me troco por nada
Se eu fosse dono do mundo...
se eu fosse dono do mundo
eu mandaria reformar,
Tirar a violência?
Claro! Em primeiro lugar,
não serei prefeito nem governador
seria mais uma pessoa
que preferi-se o amor.
Você já disse no dia de hoje
Para alguém que o ama?
Você hoje já falou para Deus
Que depende dele e o adora?
Se nada disso está acontecendo,
Você não sabe o que está perdendo.
Quando nos damos,
Quando de nós saímos
Encontramos o sentido para a vida
E a nossa existência fica mais florida...
DORES NO VARAL
"Desta vez, os degraus são de vento e, na queda boçal, quem me ampara é o tempo. Sem saber o que me dói, fiz o nome dele perpassar por entre os dentes, fazer um deserto em toda falta de saliva. Mesmo macio, disto fiz a minha dor. Ele - todo e próprio - é muita razão para a alegria que me pendura nos varais mais altos da extensão da vida. Perdoe por culpar o vento - é apenas amor."
CIDADES ONÍRICAS
"Gosto de tudo o que sou, enquanto caminho para o sono, naquele instante de repouso em que sou apenas mais um tom de vulto. Sou bom em ouvir vento varrendo ruas, em pensar na turbulência dos acasos e em fugir de insônias autorais. Refaço as costuras dos panos que me embrulham, em pensamentos desajuizados, desenfreados. Quando, por fim, durmo, acordo em cidades oníricas e tomo café da manhã com a minha bendita inconsciência."
LER-ME É LEI
"Leia-me!
Leia-me, me lê.
Lê aqui...e aqui.
Agora, aqui.
Cursivo,
Bem grafado,
Devidamente acentuado.
Todavia, gramaticalmente
Despenteado.
Leia-me!
Leia-me, me lê.
Lê aqui...e aqui.
Agora, aqui
E agora, consegue?
Não conseguiu.
Tá amuado,
Sabe que até um desvairado vê,
E idem o pobre iletrado.
Deixe-me chegar mais perto...
Fique parado!
Não afrouxe as córneas,
Não pule palavras.
Minha couraça em páginas...
Leia lauda por lauda.
Ainda não consegues?
Fiquemos bem!
É tudo esboço,
Se tá turvo,
Não tá borrado.
Tobogãs venosos
Escorrem ´liquid paper´.
Omiti ou tá apagado.
Leia-me!
Leia-me, me lê.
Lê aqui...e aqui.
Agora, aqui.
Há muita luz em mim,
Não sou de fins,
Muito pouco de abismo.
Se não consegues me ler,
É miopa - ou astigmatismo."
TIMBRE DOS VENTOS
"Quando o vento der timbre às portas e janelas: é hora de acordar. Desperta-te mansinho, como cada fio de uma nuca que se insinua. Olhai as molduras que sol pendura em paredes cruas. Escute os meus uivos - qu'esses, aprendi com os ventos. Num abraço coube todo clarão do dia. É nas manhãs dos teus beijos qu'eu me rein(vento)."
ELAS POR ELAS
Das mulheres que se perdem
Em teus lençóis,
Eis, em teu colo,
A única que lhe faz
Cama, chão e torpor
A mulher em teu colo,
Pede com sede,
Cada janela dos teus olhos,
Elas são elos,
Mas, só uma,
Geme sem dor
A mulher em teu colo
Cruza ventos e suspiros
Para ter os teus ósculos;
Ela sabe a rua do ir e do voltar
É sujeito de seu próprio verbo,
Sujeitando-se ao delírio e
à doidice
De comprar horas
Pra te amar
GOELA
GOELA
"Os meus braços balançavam.
Como um pêndulo,
Os meus braços balançavam.
Remando em antagonismos,
Meus barcos não iam,
Nem voltavam.
Meus olhos vasculhavam:
Do embrulho no estômago
Aos mares das pálpebras.
E o meu cais virava caos,
Revirava todo o chão do mundo
Até achar sementes,
Raízes, ramas ou, somente,
As palavras enterradas
A sete palmos
Em minha goela."
O CARNAVAL DA CAPITAL
"Vista sua fantasia, saia de sua Satélite, procure uma vaga próxima para estacionar. Olha o selfie! - quanta alegria. O Carnaval de Brasília vai começar. Não economize no purpurina meu bem, pois, de mixarias, nesta folia é o que mais tem. Ainda tem o vizinho, amigo de escola, inimigo de Facebook, o ex-professor e você – que, de longe, os avistou e apenas pensou. Não quis a ninguém cumprimentar. Afinal, se ébrio está, é melhor se controlar, tal como o limite dos decibéis que só ecoam com um alvará. Abram vossas rodas de amigos e grupelhos típicos, caros brasilienses. Vamos lá! Abram espaço, a ala da AGEFIS vai passar. A marchinha do relógio não é lenta. Pontualmente, à meia noite, o som vira hiato, a luz se apaga, a serpentina acaba e temos de ir a outro lugar. 'Entrepassando' pelos foliões, ouve-se a nítido e claro som: “se fosse em Salvador...”. A fantasia não é para tanto. Entre prantos e poucos beijos, eis o Carnaval da capital – o bonito é se encaretar."
RACIONAMENTO
A mingua atinge a todos
Que se declaram meus vizinhos.
Nalgum dia dos dias
Falta água em minha casa.
Quem tem sede,
Já não encontra torneira aberta
Em meus olhos.
Donde sou,
Racionamento não poupa
Nem a quem não tem.
Como eu que,
Desde que o calendário
Ganhou ligeireza,
Não ajunto
Em meu corpo
Nada que não seja tão meu,
Nenhum grão.
Mesmo no tempo em que me falta,
Sob horário de verão,
Ganho e perco horas.
Nem bolso eu tenho
Pra guardar poliqueixosos.
Não entesouro mágoas,
Tampouco guardo águas,
Pra tomar e lavar as dores
De amores
Que só a vida
Há de lhe
Economizar.
PEITO MURALHA
Minha bagagem,
Um milheiro de tijolos
Que carrego com brava vocação
E tremenda desvantagem,
Quando oscilo entre choro e riso.
Ora murmuro
Ora sussuro
Por ora, só um muro.
Por ter muralha no peito,
Quem quiser deitar à sombra,
Pode escorar a alma toda
Até fazer as pazes com o sol.
E não pode se assombrar com os vultos.
Deve podar qualquer arbusto que ornamenta
Esse caos monumental.
PASSAGEIRO
Quem passou
É passageiro
Se demorou
Tornou-se estrangeiro
Ficou mais que devia
Tornou-se ultrapassado
Passou mais que ligeiro
Deixou-me engomado
Fez vinco
Dobrou e tudo
Deixou-me arcaico
Proprietário de lembranças
Cobrou aluguel por esperanças
A um passo
De por à venda
Calendários
Quase mofados
NOBRE POBRE
"Cidade satélite, um bairro sideral. Morada de (q)uês, (n)adas e (M)arias. Lotes amplos, harém retangular. Área nobre, de reis e abacaxis. Nesse, nove quartos de dormir. Banheiros equivalentes, suítes para todos os dezoito que ali residem. Os que ali residem: condôminos. Assinantes fiéis de faixas amarelas que anunciam, mensalmente, aluguéis. Desfrutam, uma vez ao dia, de seus chuveiros mornos. Jornada nas estrelas com mais de 12 horas - desfrutando o chuveiro dos próprios poros. Suor sem racionamento. Domingo, quinta e sábado não tem água. E a desafortunada que carrega o subúrbio na sua genética, em seu extinto de sobrevivência, sempre soube o que era economizar água e choro. A esmoleira de Direitos, generosamente, se põe a exemplo. Amanhã, acordará cedo, pegará os caminhos do carma. A água voltará meio dia, mas na casa da patroa vai dar para enxaguar os olhos. 'Clarinha' - a cadelinha - vai pro banho-tosa e as crianças para a natação. Com mais três giros no terço, logo Ave Maria manda a noite e voltemos para o nosso barracão. Lugar onde o luxo é ilícito e, água, também entrou pra oração."
DANÇA DAS TUAS TRANÇAS
Menina
Deixa eu entrar na dança
Que amarra as tuas tranças
Menina
Deixa eu entrar na dança
Que amarra as tuas tranças
Oh meu bem, não conte pra ninguém
Se eu brincar na tua orelha
Viro brinco ou refém
E do teu nome eu fiz meu o-xi-gênio
Respirando sonhos livres
Estou esperando tu chegar
E do teu nome eu fiz meu o-xi-gênio
Quero desenhar teus beijos
E em teus braços velejar
SOMBRA DOS VENTOS
Cansado de ser marinheiro nauseado
De remar à unha rumo a dezembros nublados
Pus-me ao solo encravado
Aqui ando e corro descalço
Meu superego, campo farto de hectares
Da primeira à última porteira
Posse tenho das poças em que tanto afogo
Eu quem afaga a cada seca desse cerrado
Eu quem afaga
Espelho de faca
Plantarei um pássaro
Para asas fazerem sombra em meu quintal
Sujo, eivado, de esgalho (ou da migalha)
O soalho de meu quintal...
Solo, sujo, sol e chão
Farto de folhas de feridas que secaram
No outono que se foi.
Não como a sorte que nasce nos trevos
Nas vielas dos meus dedos...
A minha sorte - eu tenho outras -
Ainda é cedo
Pra mostrar
Quero (mais do que posso); vê lá se posso
Oh, esperança tão teimosa
Quero comprar uma rede
Pra me balançar
E voar em vento
Pra mo'da vida não parar
A minha sorte - eu tenho outras -
Ainda é cedo
Pra mostrar
A LUTA
"Vá em paz, meu velho pai, que Deus lhe espera com a paciência que, os dias de calor, pouco lhe deram. O teu nome - forte, em todos ecos da pronuncia - agora é clamado pelos nossas bocas ressecadas. Os nossos dias prosseguirão nos leitos dos rios que fluem, e rolam frouxos, em cada crivo das tuas rugas. As nossa diária luta marcial já nos prepara aos lutos e relutâncias. Vá, meu pai, que o que é teu vai romper as gerações famigeradas. Nunca hei de me dar ao hiato, pois teu timbre treme todo meu corpo. Respeitável seja a tua ida - que, agora, vem para sempre."