Poemas de Clarice Lispector
Há um mau-gosto na desordem de viver. E mesmo eu nem saberia, se tivesse desejado, transformar esse passo latente em passo real.
Em mim, tudo o que eu superpusera ao inextricável de mim, provavelmente jamais chegara a abafar a atenção que, mais que atenção à vida, era o próprio processo de vida em mim.
Os regulamentos e as leis, era preciso não esquecê-los, é preciso não esquecer que sem os regulamentos e as leis também não haverá a ordem, era preciso não esquecê-los e defendê-los para me defender.
É que, mão que me sustenta, é que eu, numa experiência que não quero nunca mais, numa experiência pela qual peço perdão a mim mesma, eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo.
Aquilo estava pela primeira vez fora de mim e ao meu inteiro alcance, incompreensível mas ao meu alcance.
A vida é tão contínua que nós a dividimos em etapas, e a uma delas chamamos de morte. Eu sempre estivera em vida, pouco importa que não eu propriamente dita, não isso a que convencionei chamar de eu. Sempre estive em vida.
Eu, corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco da parede sou cada pedaço infernal de mim – a vida em mim é tão insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os pedaços continuarão estremecendo e se mexendo. Sou o silêncio gravado numa parede, e a borboleta mais antiga esvoaça e me defronta: a mesma de sempre. De nascer até morrer é o que eu me chamo de humana, e nunca propriamente morrerei.
O grande castigo neutro da vida geral é que ela de repente pode solapar uma vida; se não lhe for dada a força dela mesma, então ela rebenta como um dique rebenta – e vem pura, sem mistura nenhuma: puramente neutra.
Mas por que eu? Mas por que não eu. Se não tivesse sido eu, eu não saberia, e tendo sido eu, eu soube – apenas isso. O que é que me havia chamado: a loucura ou a realidade?
A cruz deles é esquecer-se de sua própria dor. É nesse esquecer-se que acontece então o fato mais essencialmente humano, aquele que faz de um homem a humanidade: a dor pessoal adquire uma vastidão em que os outros todos cabem e onde se abrigam e são compreendidos; pelo que há de amor na renúncia da dor pessoal, os quase mortos se levantam.
Pois o que de repente eu soube é que chegara o momento não só de ter entendido que eu não devia mais transcender, mas chegara o instante de realmente não transcender mais. E de ter já o que anteriormente eu pensava que devia ser para amanhã.
Quem vive totalmente está vivendo para os outros, quem vive a própria largueza está fazendo uma dádiva, mesmo que sua vida se passe dentro da incomunicabilidade de uma cela.
Não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova da existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditar chorando.
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço.
Nunca houve – em todo o passado do mundo – alguém que fosse como ela. E depois, em três trilhões de trilhões de ano – não haveria uma moça exatamente como ela.
Ir para o sono se parece tanto com o modo como agora tenho de ir para a minha liberdade. Entregar-me ao que não entendo será pôr-me à beira do nada.
Como eu não sabia o que era, então “não ser” era a minha maior aproximação da verdade: pelo menos eu tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o “não”, tinha o meu oposto. O meu bem eu não sabia qual era, então vivia com algum pré-fervor o que era o meu mal.
Só agora sei que eu já tinha tudo, embora do modo contrário: eu me dedicava a cada detalhe do não. Detalhadamente não sendo, eu me provava que – que eu era.
Eu queria que no meu modo de te fixar para mim mesmo nada tivesse recortes e definições: tudo se entremoveria num moto circular.
Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo. E tornar-se primário a ponto de dividir as pessoas em boas e más. A hora da sobrevivência é aquela em que a crueldade de quem é vítima é permitida, a crueldade e a revolta.
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