Poemas de Chico Buarque
mor, eu me lembro ainda
Que era linda, muito linda
Um céu azul de organdi
A camisola do dia
Tão transparente e macia
Que eu dei de presente a ti
Tinha rendas de Sevilha
A pequena maravilha
Que o teu corpinho abrigava
E eu, eu era o dono de tudo
Do divino conteúdo
Que a camisola ocultava
A camisola que um dia
Guardou a minha alegria
Desbotou, perdeu a cor
Abandonada no leito
Que nunca mais foi desfeito
Pelas vigílias de amor
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a terra que querias ver dividida
Estarás mais ancho que estavas no mundo
Mas a terra dada, não se abre a boca.
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Sem açúcar
Todo dia ele faz diferente
Não sei se ele volta da rua
Não sei se me traz um presente
Não sei se ele fica na sua
Talvez ele chegue sentido
Quem sabe me cobre de beijos
Ou nem me desmancha o vestido
Ou nem me adivinha os desejos
Dia ímpar tem chocolate
Dia par eu vivo de brisa
Dia útil ele me bate
Dia santo ele me alisa
Longe dele eu tremo de amor
na presença dele me calo
Eu de dia sou sua flor
Eu de noite sou seu cavalo
A cerveja dele é sagrada
A vontade dele é a mais justa
A minha paixão é piada
A sua risada me assusta
Sua boca é um cadeado
E meu corpo é uma fogueira
Enquanto ele dorme pesado
Eu rolo sozinha na esteira
Quem me vê sempre parado,
Distante garante que eu não sei sambar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo,
Sentindo, escutando e não posso falar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo as pernas de louça
Da moça que passa e não posso pegar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Há quanto tempo desejo seu beijo
Molhado de maracujá...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me ofende, humilhando, pisando,
Pensando que eu vou aturar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me vê apanhando da vida,
Duvida que eu vá revidar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo a barra do dia surgindo,
Pedindo pra gente cantar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada,
Abafada, quem dera gritar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar...
- Quem é você?
- Adivinha, se gosta de mim!
Hoje os dois mascarados
Procuram os seus namorados
Perguntando assim:
- Quem é você, diga logo...
- Que eu quero saber o seu jogo...
- Que eu quero morrer no seu bloco...
- Que eu quero me arder no seu fogo.
- Eu sou seresteiro,
Poeta e cantor.
- O meu tempo inteiro
Só zombo do amor.
- Eu tenho um pandeiro.
- Só quero um violão.
- Eu nado em dinheiro.
- Não tenho um tostão.
Fui porta-estandarte,
Não sei mais dançar.
- Eu, modéstia à parte,
Nasci pra sambar.
- Eu sou tão menina...
- Meu tempo passou...
- Eu sou Colombina!
- Eu sou Pierrô!
Mas é Carnaval!
Não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar,
Deixa o barco correr.
Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Tentou contra a existência
Num humilde barracão
Joana de Tal
Por causa de um tal João
Depois de medicada
Retirou-se pro lar
Aí a notícia
Carece de exatidão
O lar não mais existe
Ninguém volta ao que acabou
Joana é mais uma mulata triste
Que errou
Errou na dose
Errou no amor
Joana errou de João
Ninguém notou
Ninguém morou
Na dor que era o seu mal
A dor da gente
Não sai no jornal
...Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não
Por ali reinaria meu bem
Com seus risos, seus ais, sua tez
E uma cama onde à noite
Sonhasse comigo
Talvez
Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltava
Jamais
O amor jamais foi um sonho, o amor, eu bem sei, já provei, é um veneno medonho. É por isso que se há de entender que o amor não é ócio, e compreender que o amor não é um vício, o amor é sacrifício, o amor é sacerdócio.
Almanaque
Chico Buarque
Ô menina vai ver nesse almanaque como é que isso tudo começou
Diz quem é que marcava o tique-taque e a ampulheta do tempo disparou
Se mamava de sabe lá que teta o primeiro bezerro que berrou
Me responde, por favor
Pra onde vai o meu amor
Quando o amor acaba
Quem penava no sol a vida inteira, como é que a moleira não rachou
Quem tapava esse sol com a peneira e quem foi que a peneira esfuracou
Quem pintou a bandeira brasileira que tinha tanto lápis de cor
Me responde por favor
Pra onde vai o meu amor
Quando o amor acaba
Diz quem foi que fez o primeiro teto que o projeto não desmoronou
Quem foi esse pedreiro, esse arquiteto, e o valente primeiro morador
Diz quem foi que inventou o analfabeto e ensinou o alfabeto ao professor
Me responde por favor
Pra onde vai o meu amor
Quando o amor acaba
Quem é que sabe o signo do capeta, o ascendente de Deus Nosso Senhor
Quem não fez a patente da espoleta explodir na gaveta do inventor
Quem tava no volante do planeta que o meu continente capotou
Me responde por favor
Pra onde vai o meu amor
Quando o amor acaba
Vê se tem no almanaque, essa menina, como é que termina um grande amor
Se adianta tomar uma aspirina ou se bate na quina aquela dor
Se é chover o ano inteiro chuva fina ou se é como cair o elevador
Me responde por favor
Pra que tudo começou
Quando tudo acaba
Valsa Brasileira
Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu
Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer
Fortaleza
A minha tristeza não é feita de angústias...
A minha surpresa é só feita de fatos.
De sangue nos olhos e lama nos sapatos...
Minha fortaleza é de um silêncio infame
Bastando a si mesma, retendo o derrame
Bastidores
Chorei, chorei
Até ficar com dó de mim
E me tranquei no camarim
Tomei o calmante, o excitante
E um bocado de gim
Amaldiçoei
O dia em que te conheci
Com muitos brilhos me vesti
Depois me pintei, me pintei
Me pintei, me pintei
Cantei, cantei
Como é cruel cantar assim
E num instante de ilusão
Te vi pelo salão
A caçoar de mim
Não me troquei
Voltei correndo ao nosso lar
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar
Vais voltar, vais voltar
Cantei, cantei
Nem sei como eu cantava assim
Só sei que todo o cabaré
Me aplaudiu de pé
Quando cheguei ao fim
Mas não bisei
Voltei correndo ao nosso lar
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar
Vais voltar, vais voltar
Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo assim
E os homens lá pedindo bis
Bêbados e febris
A se rasgar por mim
Chorei, chorei
Até ficar com dó de mim
O primeiro me chegou como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia, trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens e as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio, me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada que tocou meu coração
Mas não me negava nada, e, assustada, eu disse não
O segundo me chegou como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente tão amarga de tragar
Indagou o meu passado e cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta me chamava de perdida
Me encontrou tão desarmada que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada, e, assustada, eu disse não
O terceiro me chegou como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada também nada perguntou
Mal sei como ele se chama mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama e me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro e antes que eu dissesse não
Se instalou feito posseiro, dentro do meu coração
O primeiro me chegou
Como quem vem do florista:
Trouxe um bicho de pelúcia,
Trouxe um broche de ametista.
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha.
Me mostrou o seu relógio;
Me chamava de rainha.
Me encontrou tão desarmada,
Que tocou meu coração,
Mas não me negava nada
E, assustada, eu disse "não".
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Hoje topei com alguns conhecidos meus
Me dão bom-dia, cheios de carinho
Dizem para eu ter muita luz, ficar com Deus
Eles têm pena de eu viver sozinho
Quem me vê sempre parado, distante
Garante que eu não sei sambar
Estou me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando
E não posso falar
Estou me guardando pra quando o carnaval chegar
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Eu não sabia explicar nós dois
Ela mais eu
Porque eu e ela
Não conhecia poemas
Nem muitas palavras belas
Mas ela foi me levando pela mão
Íamos todos os dois
Assim ao léu
Ríamos, choravamos sem razão
Hoje lembrando-me dela
Me vendo nos olhos dela
Sei que o que tinha de ser se deu
Porque era ela
Porque era eu
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