Poesia Morena Flor de Morais
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
Mas o que quer dizer este poema? - perguntou-me alarmada a boa senhora.
E o que quer dizer uma nuvem? - respondi triunfante.
Uma nuvem - disse ela - umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo...
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Canção da Torre Mais Alta
Mocidade presa
A tudo oprimida
Por delicadeza
Eu perdi a vida.
Ah! Que o tempo venha
Em que a alma se empenha.
Eu me disse: cessa,
Que ninguém te veja:
E sem a promessa
De algum bem que seja.
A ti só aspiro
Augusto retiro.
Tamanha paciência
Não me hei de esquecer.
Temor e dolência,
Aos céus fiz erguer.
E esta sede estranha
A ofuscar-me a entranha.
Qual o Prado imenso
Condenado a olvido,
Que cresce florido
De joio e de incenso
Ao feroz zunzum das
Moscas imundas.
Menina dos cabelos compridos.
Menina da pele branca.
Menina que não é loira nem morena.
Menina que não é grande nem pequena.
Menina que não é mais criança, mas ainda não é mulher.
Menina que ri de tudo, que faz graça por tudo.
Menina que gosta de ficar em casa, mas, ao mesmo tempo, ama viajar.
Menina que ama intensamente, cheia de problemas, mas sempre feliz.
Menina doce que às vezes é amarga.
Menina quente como o café que sempre esfria.
Menina calma como vento de temporal.
Menina que dança, menina que canta pra se libertar. Pra preencher um vazio.
Menina que gosta de flores e poesia.
Menina que escreve textos que nascem em seu coração.
Menina que tem medo do escuro, mas não tem medo da vida.
Menina ciumenta, não é todo mundo que aguenta.
Menina de fases, mas nunca de metades.
Última flor do Lácio, inculta e bela,
(...) Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então por que digo eu das coisas: são belas?
(Alberto Caeiro)
Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz.
Se um poeta falar num gato
Se o poeta falar num gato, numa flor,
Num vento que anda por descampados e desvios
E nunca chegou à cidade...
Se falar numa esquina mal e mal iluminada...
Numa antiga sacada... num jogo de dominó...
Se falar naqueles obedientes soldadinhos de chumbo
[ que morriam de verdade...
Se falar na mão decepada no meio de uma escada de caracol...
Se não falar em nada
E disser simplesmente tralalá... Que importa?
Todos os poema são de amor!
No ombro do planeta
(em Caracas)
Oscar depositou
para sempre
uma ave uma flor
(ele não fez de pedra
nossas casas:
faz de asa).
No coração de Argel sofrida
fez aterrissar uma tarde
uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida.
(com seu traço futuro
Oscar nos ensina
que o sonho é popular).
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos
com a matéria dura:
o ferro o cimento a fome
de humana arquitetura.
Nos ensina a viver
no que ele transfigura:
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do ovo.
-Oscar nos ensina
que a beleza é leve.
A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perere
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
FLOR JOGADA AO RIO
Entre eclusa e esparavel
faremos a canção triste
para uma flor de papel.
O esparavel a amparar-te,
a eclusa a esperar por ti
e o tempo amargo a quebrar-te.
Flor imaginária _ flor
que vais viver para sempre
só de imaginário amor.
Por isso, entre o esparavel
e a eclusa ficas tão triste
como a canção num papel.
Uma flor pode sobreviver com pouca água,
mas não sobreviverá sem água nenhuma.
Da mesma forma um amor, uma amizade,
pode sobreviver com pouco carinho,
mas não sobreviverá sem carinho nenhum.
É preciso dispensar carinho e atenção
às pessoas que você ama, às flores do seu jardim.
Liberdade
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Bola de futebol... é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mãos.
A felicidade é como uma gota de orvalho numa pétala de flor... brilha tranquila depois de leve oscila e cai como uma lágrima de amor.
A mania da morena
está na manha de viver a vida
está no gosto de fazer comida
está na arte de criar poema.
Qual o homem que não quer
a morena que inventa moda
que canta, brinca, pinta e borda
mas que no fundo sabe ser mulher?
Que sobressai entre as meninas
que dança, dança e não se cansa
que faz pirraça igual criança
e enfeitiça como ninguém.
E que na pista hipnotiza
com sua alma perniciosa
mulher que sabe ser dengosa
com o seu corpo de malícia.