Poesia Animo Fernando Pessoa
vamos perder o contato?
visto que não há motivo para mantê-lo
por meio de encontros e recados
se a cada dia acordamos outro
e não vamos manter nem em sonho
nosso outro de ontem
outrora foi mais fácil
cortar os laços todos
vamos retomar e perder o contato
só no arquivo permanente do passado
o outro ficará pra sempre lacrado
prêmio que apenas antecipamos
cromo raríssimo
pacote intacto
quantas frutas serão por mim analisadas
com atenção em busca de lagartas
até o fim da vida
lembrando aí que esqueci de levar os óculos pro mercado
deve ser por isso também a tontura
cada volta na prateleira
é um zumbido novo nas orelhas
a vontade mista de ficar e ir embora
aprendi recentemente a comprar ovos, brócolis, farinha
ainda não aprendi a levar companhias:
ir ao mercado sem ninguém é mais rápido
não é preciso esperar outra pessoa
hipnotizada olhando temperos ou chinelos
enquanto pães de centeio são por mim esmagados
enquanto finalmente encontro a lagarta que vive na banana
e jogo longe o cacho
quando cortam a internet
coisas absurdas acontecem
mas não sem a tentativa de refresh
e do refresco de cogitar antes
um lapso passageiro
raios
insetos no aparelho
quando a página some
levando embora um link que se perderá
pra sempre, é aí que uma coceira aparece
então descobre-se que o eu lírico
carregava meses de urticária
ou brotoejas
ou micose da pior espécie
quando ninguém mais digita palavra
nenhuma, nosso herói ou heroína
se levanta com tontura pra ir à esquina
descobre árvores inesperadas
na sacada, quatro ou cinco
parentes desacordados
na escada de casa
quanto mais feia for a sua letra de mão
mais comoção devo sentir
em especial com as menores e mais redondas
deitadas como pedestre atropelado e deixado nas linhas
conhecidas como ‘letra do atrasado na escola’
ou ‘caligrafia de quem já nasceu com as teclas’
alguém que talvez precise usar régua pra alinhar as coisas
que talvez precise de ajuda e recuperação
que talvez precise de mim
talvez precise de mim
com um poema simplório
o poeta disfarça pretensão
só escreve em caso de tédio
e se rima ruim é por opção
com um poema médio
o poeta pode ser qualquer outro
pisca os olhos pretos de novo
e a lua prata bate no prédio
com um poema pomposo
o poeta se leva muito a sério
é lido no hall por um amante maldoso
que imita a voz do pica-pau
numa casa com aluguel atrasado
falamos da chuva de granizo
numa casa movediça
o despertador toca mais cedo
de uma casa com incêndio
você talvez não saia a tempo
numa casa no deslizamento
morremos pensando que pena
numa casa pequena
não cabem os panos de prato
sem uma casa arejada
você cheira a cachorro molhado
numa casa sem amor
todos arrumam outros planos
numa casa às pressas
tem coisas que você deixa
numa casa por ano
é melhor nem abrir essas caixas
Dentadura perfeita, ouve-me bem:
não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
ah, sim, shakespeare é muito bom,
mas e beterrabas, chicória e agrião?
e arroz, couve e feijão?
dentinhos lindos, o boi que comes
ontem pastava no campo. e te queixaste
que a carne estava dura demais.
dura demais é a vida, dentadura perfeita.
mas come, come tudo que puderes,
e esquece este papo,
e me enfia os talheres.
keats quando estava deprimido
se sentindo mais pateta que poeta
vestia uma camisa limpa
eu tomei um banho
com os dedos ajeitei os cabelos
vesti roupas limpas
olhei praquele espelho
o suficiente pra
sem relógio caro
fazer pose de lota
e sem pistola automática
pose de anjo do charlie
então eu disse: “é, gata”
rápida peguei as chaves
saí num pulo
só fui rir no elevador.
meu avô não gostava de agosto
dizia agosto mês de desgosto
quando passava dizia agora não morro mais
as mulheres são
diferentes das mulheres
pois
enquanto as mulheres
vão trabalhar
as mulheres ficam
em casa
lavando a louça
e criam os filhos
mais tarde chegam
as mulheres
estão sempre cansadas
vão ver televisão.
TRIGÉSIMO PRIMEIRO HEXÁSTICO
para o homem o que é do homem:
‒ sua fraqueza e fragilidade ‒
Para o ser toda a eternidade
‒ toda potência de vontade ‒
o homem é um pobre coitado
ser é um sujeito iluminado
DESPERTAR DO SER
De João Batista do Lago
Sinto o desespero dos sujeitos
que se desgraçam em seus desejos,
que se perdem no lodo de suas verdades,
que se encavernam em suas culpas,
que se morrem sem a possibilidade do renascer!
Esses garimpeiros de desejos
são profetas cosmológicos insanos,
enclausurados em suas distopias seculares;
pouco sabem da potência da força
que lhes podem transformar em demiurgos!
Plenos de suas verdades seculares
subjugam o outro sob o canto do amoral,
arrastando massas para o sepulcro abismal
sob o em riste da espada ditatorial,
que degolará qualquer mente que não se pretenda igual!
Ó irmãos de culpas várias e impostoras,
Não vos acomodeis com o jugo opressor,
Não aceiteis as sombras como realidades únicas,
há, por certo, força luminosa em vosso corpo
capaz de livrá-los dos proféticos grilhões
(Aí, então, sabereis do novo renascer e
aprenderás que a única liberdade possível
é a liberdade que te permitirá demiurgo do ser.)
SENSAÇÕES-VIAGENS
Há sensações que são barcos
enquanto velejamos
no oceano interior da vida.
Há sentimentos que são portos
num gosto adiado de chegar:
um sabor de lonjuras,
cristalizadas em azuis,
lembrando o verde das vagas
de um nômade fluir,
distantes, azulizantes...
Sensações barcos,
sentimentos portos —
enfunados de um vento azul,
indo e vindo,
daqui, dali,
azul azul azul...
Sinestesias de um viajar interno,
vestido de amplidão e pensamento
no vasto sabor anil e sal,
entre o glauco arfar das ondas
e vôos lonjuras de gaivotas...
Tenho certeza do que sinto
Do que há em meu coração
Demorei muito pra entender
Que tudo não passava de ilusão.
Amor é um sentimento verdadeiro
Recíproco de atenção
Quando não é regado, morre
Sem chances de volta
Pois a indiferença endurece
Até mesmo o mais puro coração.
Sinto-me, de alma leve
Percebo, ao passar do dia
Não lembrar mais de sua face
Me faz livre de tal agonia
Difícil decifrar, as razões de ouvir falar
Mas sei que nada em mim faz
Pois a muito ... este amor ficou para traz.
Temos que ser mais para nós mesmos e não para os outros.
Só nós sabemos o que se passa dentro de nosso coração.
Ninguém sorrirá ou chorará por você, a não ser os seus olhos e sua boca.
TRIGÉSIMO SEGUNDO HEXÁSTICO
nada existirá além de ti
retornarás para ti mesmo
caso pretendas a verdade
toda estética do sujeito
mora no teu poema profundo
versos que transcendem o ser
Se querer já é poder,
quero muito te amar, como não ?
e de ti nunca esquecer,
te prendendo bem no coração !
TRIGÉSIMO TERCEIRO HEXÁSTICO
A loucura da pós-verdade
imanta mentes toscas… líquidas
sem formas descem rios de nadas
única ação: ser a manada
que logo será consumida
pelos algozes comensais
Quanto menos tempo,
Mais frequente.
Quanto mais abraça,
Mais sufoca.
Quanto tempo tenho até a próxima?
Dia após dia
Cresce o cipó.
E ao fim do dia, é pó da construção
O homem é a construção.
O monumento é o transcorrer.
A interseção entre o real e o imaginário.
Um ponto.
O homem chora por dentro,
Para dentro é dimensão.
É direção!
Faz sentido e faz sentir.
Até breve, ou até longo.
Deixo meus comprimentos á onda.
O tempo
Tem gente aí,
obcecada,
juntando vintém
que nem tem.
Tem gente aí que
não tem tempo,
nem pra perder,
o que dirá gastar
o pouco tempo que lhe tem.
(Gabriel Marques)
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