Poemas de Paulo Leminski

Cerca de 112 poemas de Paulo Leminski

podem ficar com a realidade
esse baixo-astral
em que tudo entra pelo cano
eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano

Paulo Leminski
Toda Poesia

datilografando este texto

ler se lê nos dedos
não nos olhos
que olhos são mais dados
a segredos

Paulo Leminski
Toda Poesia

A tese segunda
Evapora em pergunta
Que entrega é tão louca
Que toda espera é pouca
Qual dos cinco mil sentidos
Está livre de mal-entendidos?

Dois loucos no bairro

Um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

O outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

Todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também

Hesitei horas
antes de matar o bicho.
Afinal, era um bicho como eu,
Com direitos, com deveres
E, sobretudo,
incapaz de matar um bicho,
como eu.

Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga.

Ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa.


Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga.

Ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa.

“Quem nasce com coração? Coração tem que ser feito. Já tenho uma porção Me infernando o peito”.

(trecho do livro em PDF: Toda Poesia)

mesmo
na idade
de virar
eu mesmo

ainda confundo
felicidade
com este
nervosismo

Depois de hoje
a vida não vai mais ser a mesma
a menos que eu insista em me enganar
aliás
depois de ontem
também foi assim
anteontem
antes
amanhã

Invernáculo

Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.

As flores
são mesmo
umas ingratas
a gente as colhe
depois elas morrem
sem mais nem menos
como se entre nós
nunca tivesse havido vênus

ver
é dor
ouvir
é dor
ter
é dor
perder
é dor

só doer
não é dor
delícia
de experimentador

se amor é troca
ou entrega louca
discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios

Paulo Leminski
Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Nota: Trecho do poema Donna Mi Priega 88.

...Mais

suprassumos da quintessência

O papel é curto.
Viver é comprido.
Oculto ou ambíguo,
tudo o que digo
tem ultrassentido.

Se rio de mim,
me levem a sério.
Ironia estéril?
Vai nesse ínterim,
meu inframistério.

ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silencio
comigo

ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo

lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça

HAI

Eis que nasce completo
e, ao morrer, morre germe,
o desejo, analfabeto,
de saber como reger-me
ah, saber como me ajeito
para que eu seja quem fui,
eis o que nasce perfeito
e, ao crescer, diminui.

KAI

Mínimo templo
para um deus pequeno,
aqui vos guarda,
em vez da dor que peno,
meu extremo anjo de
vanguarda.
De que máscara
se gaba sua lástima,
de que vaga
se vangloria sua história,
saiba quem saiba.
A mim me basta
a sombra que se deixa,
o corpo que se afasta.
Meu coração lá longe
Faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:

Você nunca vai saber o que vem depois de sábado, quem sabe um século muito mais lindo e mais sábio, quem sabe apenas mais um domingo.

Sei quando uma pessoa está por dentro ou está por fora. Quem está por fora não segura um olhar que demora...

Cansei da frase polida / por anjos da cara pálida (...) / agora eu quero a pedrada / chuva de pedras palavras / distribuindo pauladas.