Poemas inteligentes

Porque (Carlos Drummond de Andrade)

Amor meu, minhas penas, meu delírio,
Aonde quer que vás, irá contigo
Meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma,
Sabendo embora ser perdido intento
O de cingir-te forte de tal modo
Que, desde então se misturando as partes,
Resultaria o mais perfeito andrógino
Nunca citado em lendas e cimélios
Amor meu, punhal meu, fera miragem
Consubstanciada em vulto feminino,
Por que não me libertas do teu jugo,
Por que não me convertes em rochedo,
Por que não me eliminas do sistema
Dos humanos prostrados, miseráveis,
Por que preferes doer-me como chaga
E fazer dessa chaga meu prazer

Que a força que rege seu ser não se enfraqueça diante dos problemas.
Que os sonhos não alcançados sirvam de estímulos na realização de outros.
Que as dificuldades encontradas fortaleçam sua fé.
Que seu sorriso alimente sua alma quando os dias amanhecerem cinzas.
Que sua paz, equilíbrio e serenidade tornem seu caminho cada vez mais florido e feliz.

Mario Quintana

Nota: Autoria não confirmada.

A Criança Que Ri na Rua

A CRIANÇA que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer cousa de amor,
Ainda que o amor seja mudo

Se você está com olhos bem abertos, experimente fechá-los...
Agora, abra-os somente para o lado de dentro. Chegou a hora de visitar por uns instantes seu mundo interior.
Passeie calmamente aí por dentro de você, detendo-se longamente às boas imagens que você tem guardadas.
Não há qualquer problema em visitar o seu arquivo, ou o seu velho baú, desde que seja para buscar inspiração no passado, alimentar e dar força ao presente. Atenha-se ao que de mais precioso você viveu.
Alguém especial vem se formando e se moldando pelo tempo e pela história desse tempo.
Você é feliz pelo sonho de criança que você vem cultivando dia após dia, ano após ano.
Se quiser abrir os olhos, abra-os bem e procure revelar a criança que ainda brilha em você, agradeça. A vida continua. Hoje vai ser mais um dia na construção da sua história.
Está no ar a criança que você sempre preservará dentro de si.
Coração aberto, sorriso pronto, abraço fácil, beijo sincero.
Na rua, no trabalho, em casa, todo mundo vai notar que está diante de alguém muito especial.

O que tu chamas tua paixão,
É tão somente curiosidade.
E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...

Manuel Bandeira
BANDEIRA, M. A Cinza das Horas, 1917

Canção do vento e da minha vida

O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos,
E varria as amizades...
O vento varria as mulheres.
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.

Manuel Bandeira
Antologia poética. São Paulo: Global Editora, 2013.

Eu me esqueci no armário.
Pensei estar vivendo,
estudando, trabalhando, sendo!
Pensei ter amado e odiado,
aprendido e ensinado,
fugido e lutado,
confundido e explicado.
Mas hoje, surpreso,
me vi no armário embutido
calado, sozinho, perdido, parado.

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

(...)Toda gente que conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida.
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?..."

in Poema Em Linha Reta

O SILÊNCIO

O mundo, às vezes, fica-me tão insignificativo
Como um filme que houvesse perdido de repente o som.
Vejo homens, mulheres: peixes abrindo e fechando a boca
[num aquário
Ou multidões: macacos pula-pulando nas arquibancadas dos
[estádios...
Mas o mais triste é essa tristeza toda colorida dos carnavais
Como a maquilagem das velhas prostitutas fazendo trottoir.
Ás vezes eu penso que já fui um dia um rei, imóvel no seu
[palanque,
Obrigado a ficar olhando
Intermináveis desfiles, torneios, procissões, tudo isso...
Oh! decididamente o meu reino não é deste mundo!
Nem do outro...

Mario Quintana
A Cor do Invisível

Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa (a) que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! Que tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!

Jardim interior

Todos os jardins deviam ser fechados,
com altos muros de um cinza muito pálido,
onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos.
O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.

Mario Quintana
A Cor do Invisível

Pequeno poema didático

O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconsequente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas…

E todos os encontros são adeuses!

Mario Quintana
Apontamentos de história sobrenatural. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

A Criança que Fui Chora na Estrada

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

Coitado! que em um tempo choro e rio

Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Du~a cousa confio e desconfio.

Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço.
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.

Queria, se ser pudesse, o impossível;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo;

Queria que visto fosse e invisível;
Queira desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!

Para o meu coração basta o teu peito,
para a tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a tua alma..."

Nomeei-te rainha.
Há maiores do que tu, maiores.
Há mais puras do que tu, mais puras.
Há mais belas do que tu, há mais belas.

Mas tu és a rainha.

Quando andas pelas ruas
ninguém te reconhece.
Ninguém vê a tua coroa de cristal, ninguém olha
a passadeira de ouro vermelho
que pisas quando passas,
a passadeira que não existe.

E quando surges
todos os rios se ouvem
no meu corpo,
sinos fazem estremecer o céu,
enche-se o mundo com um hino.

Só tu e eu,
só tu e eu, meu amor,
o ouvimos.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

From hours to hours, we rip and rip,
From hours to hours, we rot and rot
And thereby hangs the tale.

"Sonhar mesmo que seja impossível
Lutar mesmo que o inimigo seja invencível
Suportar a dor, mesmo que seja insuportável
Correr, mesmo onde o bravo não ouse ir
Transformar no bem o que é mal,
mesmo que o caminho seja de mil milhas
Amar o puro e o inocente,
mesmo que seja insistente
Persistir, mesmo quando
o corpo não mais resista
E, afinal, tocar aquela estrela,
mesmo que seja impossível."
-Fernando Pessoa-

Soneto XXII

Quantas vezes, amor, te amei sem ver-te e talvez
sem lembrança,
sem reconhecer teu olhar, sem fitar-te, centaura,
em regiões contrárias, num meio-dia queimante:
era só o aroma dos cereais que amo.

Talvez te vi, te supus ao passar levantando uma taça
em Angola, à luz da lua de junho,
ou eras tu a cintura daquela guitarra
que toquei nas trevas e ressoou como o mar desmedido.

Te amei sem que eu o soubesse, e busquei tua memória.
Nas casas vazias entrei com lanterna a roubar teu retrato.
Mas eu já não sabia como eras. De repente

enquanto ias comigo te toquei e se deteve minha vida:
diante de meus olhos estavas, regendo-me, e reinas.
Como fogueira nos bosques o fogo é teu reino.