Poemas do Século XIX

Cerca de 1377 poemas do Século XIX

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos

Nota: Trecho de "Versos Íntimos": Link

O Corrupião

Escaveirado corrupião idiota,
Olha a atmosfera livre, o amplo éter belo,
E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo,
Que do fundo do chão todo o ano brota!

Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,
Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebelo
A gargalhada da última derrota!

A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade!...
Ah! Tu somente ainda és igual a mim.

Continua a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôs assim!

Augusto dos Anjos
ANJOS, A. Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

IX de OS DOENTES

O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!

O gênio procriador da espécie eterna
Que me fizera, em vez de hiena ou lagarta,
Uma sobrevivência de Sidarta,
Dentro da filogênese moderna;

E arrancara milhares de existências
Do ovário ignóbil de uma fauna imunda,
Ia arrastando agora a alma infecunda
Na mais triste de todas as falências.

No céu calamitoso de vingança
Desagregava, déspota e sem normas,
O adesionismo biôntico das formas
Multiplicadas pela lei da herança!

A ruína vinha horrenda e deletéria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da matéria em fusão que ainda há no centro,
Para alcançar depois a periféria!

Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos
Decompondo-se desde os alicerces!

A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstrato que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se!

Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,
O começo magnífico de um sonho!

Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!

O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna,
O vagido de uma outra Humanidade!

E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!

A árvore da serra
— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros, no junquilho.
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
Não mate a árvore, pai, para que eu viva!

E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

Inserida por jalves

ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR

Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros, me assombrava!

Mas a alga usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,

No eterno horror das convulsões marítimas,
Pareciam também corpos de vítimas
Condenadas à Morte, assim como eu!

A Subconsciência

Há, sim, a inconsciência prodigiosa
Que guarda pequeninas ocorrências
De todas as vividas existências
Do Espírito que sofre, luta e goza.

Ela é a registradora misteriosa
Do subjetivismo das essências,
Consciência de todas as consciências,
Fora de toda a sensação nervosa.

Câmara da memória independente
Arquiva tudo rigorosamente
Sem massas cerebrais organizadas,

Que o neurônio oblitera por momentos,
Mas que é o conjunto dos conhecimentos
Das nossas vidas estratificadas.

Inserida por thinkfloyd61

Matéria Cósmica

Glória à matéria cósmica, a energia
Potencial que dá vida aos elementos,
Base de portentosos movimentos
Onde a forma se acaba e principia.

Sistematização dos argumentos
Que elucidam a Teleologia:
Dentro da força cósmica se cria
A fonte-máter dos conhecimentos.

É do mundo o Od ignoto, o éter divino,
Onde Deus grava a história do destino
Dos seus feitos de Amor no Amor imersos.

Livro onde o Criador Inimitável
Grava, com o pensamento almo e insondável,
Seus poemas de seres e universos.

Inserida por thinkfloyd61

Saudade

Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.

À noite quando em funda soledade
Minh'alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.

E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,

Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.

Inserida por iasmindutra2707

Budismo Moderno

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Augusto dos Anjos
ANJOS, A. Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
Inserida por AnaGabriela21

Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo
Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em mágoa, eu também vou passando
Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo...

Augusto dos Anjos
ANJOS, A. Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

Nota: Trecho de "Insônia"

...Mais
Inserida por pensador

Desde então para cá fiquei sombrio
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade
E a grandes golpes arrancou raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!”

“Meu coração, como um cristal, se quebre,
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!”

“Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a alegria é uma doença
E a tristeza é minha única saúde.”

"Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes mostram ser felizes!"

"(...)
Ah! Se me ouvisses falando!
(E eu sei que às dores resiste)
Dir-te-ia coisas tão tristes
Que acabarias chorando.

Que mal o amor tem me feito!
Duvidas?! Pois, se duvidas,
Vem cá, olha estas feridas
Que o amor abriu em meu peito.

Passo longos dias, a esmo...
Não me queixo mais da sorte
Nem tenho medo da Morte
Que eu tenho a Morte em mim mesmo!
(...)"

"Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!

O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o ômega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração te desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!

Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila,
Excrescência de terra singular.

Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: - o de chorar!"
(Eu e Outras Poesias)

Inserida por Filigranas

AMOR E RELIGIÃO

Conheci-o: era um padre, um desses santos
Sacerdotes da Fé de crença pura,
Da sua fala na eternal doçura
Falava o coração. Quantos, oh! Quantos

Ouviram dele frases de candura
Que d'infelizes enxugavam prantos!
E como alegres não ficaram tantos
Corações sem prazer e sem ventura!

No entanto dizem que este padre amara.
Morrera um dia desvairado, estulto,
Su'alma livre para o céu se alara.

E Deus lhe disse: "És duas vezes santo,
Pois se da Religião fizeste culto,
Foste do amor o mártir sacrossanto".

Inserida por PensamentosRS

Vandalismo


Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.


Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.


Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos ...


E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

Inserida por NiravaGulaboBeth

Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!

Inserida por NiravaGulaboBeth

Ao Luar

Quando, à noite, o Infinito se levanta
A luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha táctil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado…

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!

Inserida por coulduloveme

“A mocidade é como a primavera, / A alma, cheia de flores, resplandece, / Crê no bem, ama a vida, sonha, espera, / E a desventura facilmente esquece”.

⁠O homem feliz é aquele que pode imitar o caramujo. O caramujo traz às costas a própria casa, não tem apólices, não tem dores de cabeça; e, quando viaja, vai dizendo alegremente: "omnia mecum porto!"

Olavo Bilac
Ironia e piedade (1916).

“[A mocidade] É a idade da força e da beleza:/ Olha o futuro e inda não tem passado; / E encarando de frente a natureza, / Não tem receio do trabalho ousado.”

“[A mocidade] Ama a vigília, aborrecendo o sono; / Tem projetos de glória, ama a quimera; / E ainda não dá frutos como o outono, / Porque dá flores como a primavera”.

⁠Surdina (em Alma Inquieta)
No ar sossegado um sino canta,
Um sino canta no ar sombrio...
Pálida, Vénus se levanta...
Que frio!

Um sino canta. O campanário
Longe, entre névoas, aparece...
Sino, que cantas solitário,
Que quer dizer a tua prece?

Que frio! embuçam-se as colinas;
Chora, correndo, a água do rio;
E o céu se cobre de neblinas...
Que frio!

Ninguém... A estrada, ampla e silente,
Sem caminhantes, adormece...
Sino, que cantas docemente,
Que quer dizer a tua prece?

Que medo pânico me aperta
O coração triste e vazio!
Que esperas mais, alma deserta?
Que frio!

Já tanto amei! já sofri tanto!
Olhos, por que inda estais molhados?
Por que é que choro, a ouvir-te o canto,
Sino que dobras a finados?

Trevas, caí! que o dia é morto!
Morre também, sonho erradio!
- A morte é o último conforto...
Que frio!

Pobres amores, sem destino,
Soltos ao vento, e dizimados!
Inda voz choro... E, como um sino,
Meu coração dobra a finados.

E com que mágoa o sino canta
No ar sossegado, no ar sombrio!
- Pálida, Vénus se levanta...
Que frio!

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