Liberdade Borboleta Fernando Pessoa
Em uma manjedoura
Um simples Deus menino.
Santa mãe descansa,
após dar à luz a esperança dos homens.
O pai embala o seu Natal vivo.
Santo Deus menino!
Céu cadente ao alcance das mãos.
Quando o verbo se fez poeta
a poesia virou sinônimo de Deus.
Em tempos de reclusão, a palavra vale mais que a fotografia. É das palavras de afeto que realmente sentimos falta; da boca do interlocutor que é a moldura dessa saudade.
Chove bastante aqui dentro
Venta forte
Inverno-me.
Ao invés de praguejar
Varro as folhas caídas
Agradeço o beijo da brisa
E tento preservar os galhos
Até o meu próximo florescer.
Economizo a informação para aumentar o encantamento. É o jeito que encontrei de revisitar o éden. A utopia ajuizada não é utopia.
Se o pensamento cria a realidade como você ainda não se materializou?
Na ausência do material o imaterial tomou lugar. Meu pensamento criou asas e foi te visitar.
Pensamentos felizes esse é nosso segredo.
O papel é o meu passaporte para o nosso lugar.
No lá... já existimos e o somos o que quisermos. A poesia é o nosso ventre.
Como árvore permaneço no mesmo lugar
resistindo as intempéries das estações.
Resoluto e ao mesmo tempo submisso às
novidades de cada novo amanhecer.
As pragas até queimaram minhas folhas,
mas não deixei atingirem meus frutos.
Minhas raízes estão ainda mais fincadas
minha copa a cada dia menos utópica.
Após me restabelecer decidi que vou morrer
de finitude, não de fatalidade.
Minha esperança é que o vento leve
partes saudáveis de mim e polinize um
futuro que não verei.
A mentira não muda de status conforme o cargo de quem a contou. Pode ser seu amigo, seu companheiro, seu pai, seu médico, seu patrão,seu presidente a mentira continua sendo mentira e sempre deixará quem a contou menor.
Do teu jardim poético
exala
verso rosa.
Ao expirar
inspira
aos que te vêem.
Teu verso é estrela
que cai sem aviso,
do céu da boca
ao coração dos que te lêem.
Procure não divulgar seus projetos embrionários. É importante que você saiba
que nem todos querem que você obtenha sucesso. Até porque o sucesso destes depende de sua contínua servidão.
Ao olhar do vidro avanço
o tempo nesse receptáculo.
Escoa uma areia fina
de seu corpo esguio.
A chuva cor de palha
vem de céus afunilados.
A miséria a conta gota nunca cessa,
caí de grão a grão.
Na cabeça os grânulos da areia
do tempo desgastam a fé e os fios.
Aqui não há futuro
tudo é agora ou tudo já se foi.
Três de novembro
No mês em que a primavera se despede,
e o sol, mais manso, faz-se presente,
floresciam dias de ouro e espera,
prenúncio de encontros, docemente.
Foi na estação de brisa e lume,
quando as folhas murmuram segredos,
que nos achamos sem alarde,
em cores tênues, sem medos.
Caminhavas já em meus sonhos,
estrada traçada em silêncio,
onde o murmúrio do vento sussurra
o amor que arde em denso, intenso.
O mundo, em sua dança vasta,
girou em círculos de espera,
até que em ti se fez acalanto,
porto certo, luz sincera.
Achei-te na dobra do tempo,
onde o aleatório se curva à sina.
Outros conheci por ócio e acaso;
a ti, encontrei porque eras divina.
Outros, passos soltos, vento;
tu, raiz, urgência, beijo,
entre ecos e risos, enfim,
vi que ao teu lado me pertenço.
Timoneiro
Se me fosse imposto optar
Entre a pedra do chão que sangra
E o céu que engole o dia,
Eu ficaria com o mar,
Onde o tempo se desfaz em ondas
E a eternidade é apenas um sopro.
Nos braços do meu barco
— solidão que navega —
Paro em portos de ausência
E parto levando memórias
Que ainda não gestaram.
Longe do ruído do mundo,
Sou um vulto que vaga e sonha.
O balanço do mar é um relógio,
E remo, rezo e remo até que a noite
Cante em meu braço cansado.
Quando não puder mais suportar,
Soltarei os remos,
Redirecionarei a rota dos silêncios.
E se não souber o que fazer,
O vento, antigo mestre, saberá,
Pois ele é voz do que em mim nunca cessa.
Está provado: o universo é extremamente hostil à vida. Ainda assim, mesmo sem as condições ideais, o homem se fez apenas com fragmentos das substâncias do espaço. Talvez seja essa a razão de nossa conexão com os céus; lá, vislumbramos nossa própria essência, como poeira de estrelas.
A humanidade é o milagre! Somos a própria teima.
Orvalho
Há uma calma umidade que se detém,
silenciosa, atrás das cercas — nas tramas do mato,
onde o peso das horas mal se sente.
Não teve o tempo de ser apenas água,
carregou-se de sentido ao escorregar da
folha na sombra fria da noite.
Segue um curso que não escolheu,
um fio d’água, sentimento indefinido
que se perde nas dobras do ser.
Será lágrima do mundo ou suor da terra?
A incerteza do líquido que se dissolve é a mesma
da superfície breve de tudo o que vive.
Do gotejar ao chão, desfaz-se em ser,
água que se entrega ao jardim sem mágoa,
rompe as raízes, dissolve o silêncio,
sempre sendo outra, sempre fugindo de si.
Nas bifurcações da vida, onde tudo se entrelaça,
dilui-se para que a essência se revele,
ciclo de entrega e retorno, onde a fragilidade
se faz força.
Inquilina da própria queda,
desce da folha como do cílio uma lágrima,
com o gosto salgado do mar que nunca viu,
e o peso de todos os sonhos que se
perderam.
Não é a mesma lágrima de outrora,
não é a mesma gota que escorreu um dia,
quando despejada tocou as pedras que
chamei de peito.
Poeta e a Casa do Mundo
No domingo, o sol se espicha e se esconde. O astro luminoso, solitário, vai se perdendo no horizonte, enquanto o poeta, quieto, se perde dentro de si.
Na pausa, chega em casa, mas a casa é estranha. Uma dúvida o atravessa:
Será que aqui é minha morada ou apenas o lugar onde me deixei cair?
Essas paredes me guardam ou apenas me observam, como a um estranho?
O silêncio, sempre atento, não diz nada.
Um raio de sol aparece pelas frestas, tímido, suficiente para espalhar luz por todo o interior. O poeta sorri, como quem encontra um velho amigo, e se ergue.
Renascido, momentaneamente, pensa que a vida é mais, mas só por um instante.
As paredes são companheiras caladas, que sabem muito, mas não falam.
Aqui, o poeta ainda tenta ser inteiro.
"Esta casa é o meu peito", diz o poeta.
Sai para fora de si. Respira. No breu, sente a frescura da noite.
Nota as estrelas lá no alto, tão pequenas e, mesmo assim, tão vastas.
O poeta se vê como um grão no deserto, um grão entre vários grãos.
Volta para dentro, com a alma um pouco mais cheia. Não está sozinho, nunca esteve. O mundo é a casa do poeta, e ele, um pedaço dela.
Registro do Pôr do Sol
Saco a câmera ao ver a luz se desfazendo em farelos no horizonte,
o poente repartido entre folhas e ondas.
Cada grão dourado adere à pele do vento,
como se o tempo, feito metal antigo,
cedesse, também, à força invisível da maresia.
O sol desce como quem desaprendeu o caminho,
tropeça nos galhos secos,
tateia as frestas com dedos queimados,
num gesto quase humano de hesitação.
Não há pressa — o mar perdoa seus atrasos.
O céu não é só azul:
é um tecido remendado com prismas de luz,
um bordado delicado, feito de calor e calma.
Distraído, vejo o dia escorrer pelos cantos da tarde,
sem saber se é crepúsculo ou despedida.
Tudo o que resta
é essa teimosia de, em registro, pôr o sol no bolso,
como se o infinito coubesse na palma da mão.
O Cético
Cético que era,
carregava nas mãos a secura da descrença,
como quem segura um punhado de areia
que o vento teima em dispersar.
Cético que era, criou um deus afônico
para preencher seus silêncios
e atribuiu a ele todo o ruído.
Cético que era, sabia que o que floresce na certeza é sempre pedra,
e pedras, imóveis, não geram nada.
Cético que era, afirmava que a certeza era um campo estéril,
onde os dias passavam sem jamais brotar.
Cético que era, dizia que as dúvidas tinham raízes,
capazes de atravessar a pele das palavras
e germinar árvores frutíferas.
Cético que era, escreveu uma bíblia para ter no que acreditar,
mas a descrença, astuta,
plantou em seus bolsos sementes de inquietação.
Cético que era, reconheceu que caminhava entre sombras,
mas carregava possibilidades de luz.
Cético que era, sabia que só o incerto conhece caminhos.
Cético que era, encontrou na dúvida
o verdadeiro sopro da criação:
um gesto pequeno,
capaz de iluminar e reflorestar o mundo.
Cético que era, entendeu que o milagre mora no instante
em que o incerto se torna possibilidade
e o simples, eterno.
Cético que era, nunca guardou gentilezas ou atos de bondade para o porvir;
gastou tudo o que tinha de bom aqui.