Coleção pessoal de Epifaniasurbanas

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O fio invisível

⁠Toda pipa tem um cordão umbilical—
um elo fino entre a vertigem e o colo.
O chão assiste, em silêncio, aos pulos
de quem ensaia voo nos desníveis da rua.

Há um acordo secreto entre o solo e o vento:
o menino brinca de ser nuvem,
enquanto a terra o segura pelas solas,
num pacto de sopro e equilíbrio.

Benditas mãos que seguram o barbante do sonho,
essas que sabem do vento antes da pipa
e sustentam o menino enquanto ele inventa altura.

Quando os sonhos desafiam a gravidade,
há sempre um olhar antigo que nos ancora,
um fio invisível que nos sustenta
no encanto de viver como passarinho
entre o voo e o solo.

O fio invisível


⁠Toda pipa tem um cordão umbilical—
um elo fino entre a vertigem e o colo.
O chão assiste, em silêncio, aos pulos
de quem ensaia voo nos desníveis da rua.

Há um acordo secreto entre o solo e o vento:
o menino brinca de ser nuvem,
enquanto a terra o segura pelas solas,
num pacto de sopro e equilíbrio.

Benditas mãos que seguram o barbante do sonho,
essas que sabem do vento antes da pipa
e sustentam o menino enquanto ele inventa altura.

Quando os sonhos desafiam a gravidade,
há sempre um olhar antigo que nos ancora,
um fio invisível que nos sustenta
no encanto de viver como passarinho
entre o voo e o solo.

⁠O que os pés dizem

Os pés falam quando a boca se cala.
Depois do êxtase, descansam sem culpa,
despreocupados como gato ao sol,
um sobre o outro, cruzados,
ou largados ao acaso—
o prazer não pede alinhamento.

Há quem estique os dedos,
como quem espreguiça o pensamento.
Outros os deixam pender de lado,
desarmados, esquecidos do chão.

A posição dos pés é confissão sem palavras:
se recolhidos, um restinho de pudor,
se soltos, um abandono feliz,
se entrelaçados, um desejo de demora.

No fim, não são os olhos que dizem tudo.
São os pés, descalços,
rendidos ao próprio silêncio.

⁠Homem desavesso

Gasto os olhos nas miudezas.
Desimporto razões.
Coleciono restos de tarde,
palavras que caem do telhado.

Envelheço no passo do sol,
desbotando feito roupa no varal.
Quando a luz se gasta no chão,
fico pronto ao poema.

No escuro, me encontro,
feito bicho que só escuta o silêncio.
É no avesso do mundo
que entro em estado de poesia.

⁠Deságua

Sou rio, mas não mando em mim.
Nasço tímido entre pedras,
um fio d’água sem dono.
Aprendo cedo a correr,
a buscar o mar sem perguntar.

As pedras me ensinam desvios.
As margens me lembram limites.
Aceito ser água que passa,
que abraça, que perde e que segue.

Se um dia seco, o barro me guarda.
Se transbordo, o mundo me teme.
Mas a vida não me espera—
ela deságua mesmo quando eu já não estou.

⁠Floras

Abrem asas.
Voam...
Carregam a primavera.
Sem elas,
o mundo desaprende a florir.

Voam...
Polinizam os ares,
desarrumam o azul,
fazem festa aos olhos
dos que sabem ver a beleza.

Voam...
Flores sem caule,
borboleteiam.
Panapanás,
metade mulher, metade poesia.

⁠O mais passarinho de todos

O mais passarinho de todos soprou o vento,
e o pardal achou onde ficar.
Até a andorinha, sem mapa nos olhos,
desaprendeu a se perder.

O mais passarinho de todos bordou os rios,
escreveu caminhos sem pressa.
Fez o tempo andar de pés descalços
e me ensinou a brincar de novo.

O mais passarinho de todos acendeu as folhas de verde,
e o chão se ajoelhou em raiz.
Até as pedras, duras de silêncio,
aprenderam a escutar o orvalho.

O mais passarinho de todos desfez a distância do céu.
Coube no voo, na seiva, no barro,
e até na palavra que eu não sei dizer.
Eu, pássaro de asa murcha,
com sua ajuda, encontrei pouso.

⁠Manifesto analógico

Caminho ao contrário da pressa digital.
Meus pés fazem questão de tropeçar.
Gosto de esbarrar nos nomes,
perder o rosto e achá-lo na lembrança.
Lembrar os números e discar.
Deixar a voz ferver no ouvido sem acelerar o áudio.

Não quero que um robô faça o que minhas
mãos ainda tremem para fazer.
Escrever torto, borrar o caderno, errar sem a
opção de apagar.
Minha mente é ilógica, se perde no meio da
frase porque está ocupada sentindo.

Fora do trabalho, me divorciei do virtual.
Não confio o que amo às nuvens —
nuvens não sabem ficar.
Mudam de forma, trocam de nome,
desaparecem sem se despedir.

Voltei a imprimir memórias,
fazer backup na gaveta,
guardar fotos para que o tempo não as engula.
Escrever cartas com minha letra,
imprimir no texto minha personalidade.

Não tenho pressa de chegar a lugar algum.
Dificilmente chegarei ao dobro dos anos de hoje.
O destino já não me interessa tanto quanto o caminho.
Quero o que importa perto.
Quero ter rabiscos nas margens dos livros,
esperando o reencontro com minha versão mais ingênua.

⁠Não se relacionem nem apoiem aqueles que querem o seu mal. Ideias racistas, xenofóbicas e misóginas não são apenas opiniões divergentes — são promessas à espera de oportunidade.

Como pode um nordestino apoiar alguém que o despreza abertamente? Como pode uma pessoa LGBTQIAPN+ dar voz a quem nega sua existência? Como pode uma mulher defender quem insiste em reduzi-la à inferioridade?

A adesão a discursos que negam a dignidade de um grupo pode vir da desinformação, da manipulação emocional, de promessas individuais ou da ilusão de que "não é bem assim". Mas é exatamente assim. Palavras constroem narrativas, narrativas moldam políticas, e políticas definem vidas.

Não se enganem: o ódio normalizado hoje se torna a violência legitimada amanhã. Nenhuma promessa econômica justifica a negação de direitos fundamentais. Nenhuma tradição pode servir de desculpa para a opressão. O caminho para a barbárie começa com a aceitação da intolerância como mera opinião. E, contra isso, não há espaço para neutralidade.

⁠Não se relacionem nem apoiem aqueles que querem o seu mal. Ideias racistas, xenofóbicas e misóginas não são apenas opiniões divergentes — são promessas à espera de oportunidade.

Milagre de chão

Meu milagre não desce do alto,
não brilha em vitral.
Não vem do céu, mas de poças.

Rasteja.
Bebe do lodo dos dias passados,
canta no barro onde a dor se aloja.

Devagareia.
Aprendeu com o peso da espera
a carregar o lar nas costas.

Meu milagre é andar sobre as mágoas,
ser lesma que, mesmo lenta,
assina nas folhas um rastro de ida.⁠

⁠Asa de um lado só

Só tenho uma asa.
Um lado mudo de pássaro.
O céu me namora,
mas eu sou do chão.

Se tivesse duas,
voava em linhas tortas,
fazia rasantes no azul
e inventava nuvens novas.

Com uma só,
fico brincando com o vento,
sonhando ser passinho,
pés no chão e cabeça nos ares.

Quem sabe um dia,
no finalzinho da lida,
a asa murcha cresça
e eu, enfim, conheça o céu.

Minha asa pulsa,
como se já soubesse do infinito.
Uma asa é quase nada,
ou tudo — depende do corpo que sonha.

⁠Timoneiro


Se me fosse imposto optar
Entre a pedra do chão que sangra
E o céu que engole o dia,
Eu ficaria com o mar,
Onde o tempo se desfaz em ondas
E a eternidade é apenas um sopro.

Nos braços do meu barco
— solidão que navega —
Paro em portos de ausência
E parto levando memórias
Que ainda não gestaram.

Longe do ruído do mundo,
Sou um vulto que vaga e sonha.
O balanço do mar é um relógio,
E remo, rezo e remo até que a noite
Cante em meu braço cansado.

Quando não puder mais suportar,
Soltarei os remos,
Redirecionarei a rota dos silêncios.
E se não souber o que fazer,
O vento, antigo mestre, saberá,
Pois ele é voz do que em mim nunca cessa.

⁠Pareidolia

Nas nuvens, um coelho,
feito de vento e migalha de céu.
A natureza inventa vida onde há silêncio,
e a mente, danada, faz enxergar.

Eu vejo contornos que nem existem,
ou talvez existam, porque os inventei.
Minha sina é dar nome às coisas que ainda não sei o que são
e bordar sentidos no que vi.

Um galho seco me acenou — ou talvez fosse um braço.
Ao lado, a bananeira, com dentes amarelos, sorriu.
As coisas criam sentidos quando alguém as olha sem pressa.

Dia desses, vi teu rosto numa poça d’água,
um rosto de luz, desses que não têm peso.
A poça ria de mim com suas bordas de lama,
igualzinho tu faria se me visse fantasiar.
E eu, feito criança, ri de volta.

Seria loucura, ou só o mundo brincando de ser?
Tudo acaba virando o que o olhar quer.

⁠Ano novo.

O tempo
empilha dias como quem constrói algo.
No calendário, há um rumor divino,
intervalo entre o que fomos
e o que fingimos ser. Fim.

O ano velho, cansado e curvado,
esconde no bolso sua última promessa,
deixa sobre a mesa o peso dos sonhos,
riscados por mãos que tremem.

Meia noite.
No salto do instante que vira página,
nos descobrimos novos,
ainda que usados. Recomeços.
No limite do voo,
não há destino:
apenas um céu que ainda não sabemos ler.

⁠Alforria das Palavras

Depois da ordem das coisas,
as pedras só podiam rolar,
tão certas quanto o vento,
que não indaga os caminhos.

Não havia mais o inverso.
De tudo, só as palavras
escapavam à sujeição.
Flutuavam livres,
no deslimite das coisas,
nas bordas do impossível.

Iam e vinham,
urgentes em se espalhar,
como quem entende os despropósitos da vida
sem jamais se perder.

As pedras sabiam o seu lugar,
mas a palavra, alforriada,
não se aquietava,
não se atava ao chão.

As pedras,
escravas de seu destino,
rolavam para cumprir o que lhes foi dado.
Enquanto as palavras existiam,
suspensas entre o céu e a terra,
preenchendo os vãos do não dito.

⁠Santos

Quem ama a Deus não é santo.
Não há dificuldade em amar o que é perfeito.
O amor é sacro.
Por essa razão, vive de impossibilidades.
Sua manifestação é, em si, o milagre.

Se o amor é o milagre,
amar aqui é o ensaio da eternidade.
Que sejamos santos,
não por amarmos a perfeição,
mas por aprendermos a amar a humanidade.

Amar é se despir de si,
é vestir-se do outro,
é encontrar, nas imperfeições,
a oportunidade de criar asas.
Santos são aqueles que amam intensamente.

Que sejam canonizadas as pessoas que amam pessoas!
Que os atos sejam as palavras que nos faltaram.
Amar ao próximo
é a forma mais corajosa
de antecipar a utopia da eternidade.

Tamoatá

Tamoatá não é só um peixe,
é uma palavra que aprendeu a andar.
Inventou pés onde só havia barbatanas,
carrega no casco histórias que desafiam o seco
e planta memórias no fundo das lagoas vazias.

Quando a água foge, ele permanece.
Não se assusta com a ausência,
seu sonho o umedece.
Respirar fora d’água é a poesia do Tamoatá:
ele mastiga o ar como quem se alimenta de esperanças.

É peixe do mato, de água pouca e chão úmido,
veste o barro como quem carrega sua pele.
Faz-se rio onde só há poeira,
e, no silêncio das várzeas secas,
aprendeu a ouvir a fala das poças.

Tamoatá é peixe caipira,
conhece o mato como quem conhece o caminho de casa.
Ele não tem pressa,
faz do brejo um campo de repouso.
Com seus pés de peixe, planta passos na terra molhada,
ensinando ao tempo a ser lento, a ser raiz.

Ele prova que, fora da água, a vida também tem suas correntes,
mesmo que sejam mais lentas.

⁠Bibliosmia

O cheiro… ah, o cheiro de você.
Não é só cheiro. É o resto do mundo.
O cheiro da descoberta, o odor almiscado do que se ignora,
do que ainda falta.
É cheiro de livro novo.
Você é o odor do não dito.

Entre os dedos, suas páginas se abrem.
A palavra toma corpo, o verbo se faz carne.
Eu quero conjugar o que está entre as palavras,
capa, bordas. Ir até as margens da linguagem, onomatopeias.
Seu gênero é esse, eu sei: fantasia e suspense. Experiência sensorial.

Respira, você. E eu também respiro, exalo.
É o amor que se disfarça de saber,
ou saber que se dissolve em desejo?

A capa é corpo fechado. O que não se diz.
Aberta, toque. Você é o que não se lê.

⁠Jesus

Sob uma noite feliz;
anjos entoam cantos de paz.
A estrela-guia rasga a escuridão,
trazendo luz aos corações cansados.
É o infinito que se doa ao pequeno.

Em uma manjedoura,
um simples Deus menino.
A santa mãe descansa,
após dar à luz a esperança dos homens.
O pai embala o Natal vivo.

O menino dorme,
carregando o peso da eternidade.
Seu choro é prenúncio de redenção,
um amor tão imenso
que escolheu caber num berço de palha.

Santo Deus menino!
Céu cadente ao alcance das mãos.
Quando o Verbo se fez poeta,
a poesia tornou-se sinônimo de Deus.