Liberdade Borboleta Fernando Pessoa
"A pessoa mundana vive acossada por medos viscerais: o presente a oprime, o passado a assombra e o futuro a desespera".
"O inferno é a inviabilidade de redenção, ou seja: a pessoa está aprisionada na imanência de uma dor para a qual não há saída. Daí o desespero. Daí o ódio devotado a todos os que não se encontram em tal situação. Daí a inveja. Daí a língua pródiga em blasfemar contra tudo
Nesta vida, deparamos com vários exemplos de gente derrotada pela angústia, de gente decaída no desespero, de gente refém das próprias murmurações e detrações.
Deus nos livre de chegar a tal estado, arquétipo da esterilidade espiritual em que uma pessoa, com grave culpa, se fecha à possibilidade de reorientar o vetor de sua vida.
Tais criaturas nos mostram que o inferno é logo ali, e ai de nós se não estivermos vigilantes".
"A pessoa de baixa auto-estima é das mais capazes de ferir psicologicamente o próximo – sobretudo se este lhe quer bem. A sua insegurança a faz voltar-se de maneira instintiva contra quem acredita no seu potencial, quem a valoriza de verdade, pois isto lhe traz esperanças contrárias à maneira como se enxerga.
Em suma, para quem é viciado em desesperança, ser amado é uma afronta intolerável".
"O sinal de que uma pessoa perdeu a inocência – e entrou, decisivamente, no caminho da maldade – é quando ela passa a culpar o próximo por suas próprias falhas".
"A personalidade é a identidade profunda de uma pessoa consigo mesma, naquilo que essencialmente a constitui. Portanto, não pertence à ordem do agir, mas à do ser. Não pertence também a nenhuma instância subconsciente ou inconsciente. Não pertence, por fim, à instância sensitiva na qual afloram inúmeros apetites físicos.
A personalidade é a própria pessoa desprovida dos vícios que a impedem de afirmar-se no mundo pelo amor.
Tudo o que se constitui em óbice para o amor despersonaliza, desfigura nalgum grau a pessoa humana. Neste sentido, alguém que vive na superfície de suas pequenas satisfações ou insatisfações cotidianas é uma personalidade apagada, sem atrativos, desprovida de digitais espirituais que a distingam das demais pessoas.
Uma pessoa desfigurada por vícios presta-se à homogeneização fomentada por ideologias, sejam estas quais forem. Continua sendo uma pessoa, é verdade, porém uma pessoa em ruínas, impossibilitada de conhecer as suas próprias potencialidades.
A personalidade é o sujeito que está para além de todos os acidentes que nele inerem, quer intrínsecos, quer extrínsecos. A pessoa pode ser magra, baixa, alta, gorda, ter sofrido isto ou aquilo na vida. Estas circunstâncias não configuram a sua personalidade, embora a influenciem.
O "eu" em sua nudez metafísica, operando habitualmente de acordo com a excelência das potências superiores da alma, inteligência e vontade. Isto é a personalidade.
Quantos de nós conseguimos alcançar esse âmago que nos constitui?"
"Jamais desconfie da sinceridade de uma pessoa que está no pleno exercício gozoso de sua própria estupidez".
"A credulidade da pessoa enganada é o pudor neurótico com que ela finge não ter sido feita de idiota".
"A omissão é uma espécie de estupidez serena, sem espalhafato, pela qual uma pessoa vai aos poucos destruindo a sua própria consciência".
"O ódio da pessoa de boas maneiras é, de todos, não apenas o mais insidioso, mas também o mais resiliente. É o ódio do neurótico que, sob o velame da etiqueta, falseia a própria consciência e ganha terreno livre para destilar a sua peçonha sem culpa. Esse ódio abscôndito, alimentado na sombra e nela mantido por uma espécie de pudor maligno, ainda que se esconda nos meandros da cordialidade, da fala mansa, dos ditos chistosos, das respostas que de ensaiadas acabam por transformar-se em reflexos condicionados, escapole num ou noutro momento de descuido, mostra-se como o furúnculo que expele um pus fétido.
Nenhum ódio consegue manter-se em segredo por tempo indeterminado, nem este. A coisa é muito simples: o ódio corrói todos os vernizes, e por que diabos não o faria com o da polidez simulada?
Neste mundo que não se pode chamar de paraíso das retas intenções, nunca é demais uma pessoa manter as narinas treinadas para farejar o ódio que busca ocultar-se nos sorrisos, nos tapinhas nas costas, nos elogios".
"Amizade só existe de pessoa a pessoa; jamais entre grupos. Quem põe o rebanho ao qual pertence — muitas vezes, por covardia para lidar com os próprios fantasmas — acima da insubstituível relação "olho no olho", com todos os percalços que esta traz no decorrer do tempo, certamente é um crápula.
É alguém incapaz de genuína amizade, entre outras coisas porque só consegue vislumbrar um simulacro dela".
"A pessoa que cresce na virtude logo aprende duas coisas sem as quais a vida em comunidade vira um verdadeiro inferno: civilidade nas divergências e inteligência nas convergências.
A concórdia não regida pela inteligência vira hipocrisia; a discórdia não regida pela civilidade vira contenda baixa, discussão entre celerados".