Graça
Somos o resultado do convencimento emocional e intelectual investido por todos aqueles em quem confiamos, bem como o resultado de tudo que acreditamos e raramente nos importamos se estamos felizes de verdade com o ser que nos tornamos, pois basta-nos atender a demanda de ser o que esperam que sejamos para passarmos pelo controle de qualidade das instituições de controle, e agradar os nossos líderes e afetos
Depois que a imagem passou a ser a coisa mais importante na sociedade tudo ficou meio estranho e artificial. O ser humano passou a ter menos conteúdo e mais selfie e até a comida passou a ser mais bonita, porém nutri menos, daí o consumo absurdo de complementos, além de estar ao alcance de menos gente, afinal, a maioria sente fome, mesmo, no dia a dia, é pelo estômago e não pelos olhos, bem como não têm dinheiro para substituir a sua nutrição natural com a comida na mesa pelas vitaminas de laboratório, pois esta maioria ainda é adepta ao arroz com feijão e não ao prato decorado para ser fotografado e elaborado cheio de técnicas para vencer concurso culinário e distanciar cada vez mais as pessoas uma das outras com esta contribuição descabida ao glamuralizar o que é vital para qualquer ser humano.
Ah, e o cérebro que está cada vez mais se tornando um sedentário de tanto que vive em isolamento intelectual e o único exercício que estamos permitimos que ele faça é sair da caixa craniana para malhar nas redes sociais de máscara, claro, para não correr o risco de se contaminar com a veracidade e/ou coerência diante de uma informação que nos desagrade ou nos obrigue a repensar valores.
Depois que a imagem passou a ser a coisa mais importante na sociedade, até a morte passou a ganhar holofotes com status de celebridade e a vida passou a ser uma LIVE e está compactada em um Book de filtros cumplices de uma falsa beleza, tendo os seus personagens uma realidade de solidão íntima ilustrada no seu comportamento exibicionista o que está transformando a espécie, notoriamente, em um permanente paciente de divã.
Não aceito que digam que brasileiro mais humilde é burro. Isto é coisa de uma elite preconceituosa. Quer um exemplo? Nosso povão entende o jogo do bicho.
No meio das palavras
Quando, nos lábios, começa um continente,
suspenso no apelo líquido dos beijos,
há um barco que cresce nos meus olhos
e, entre búzios verdes, escrevo água.
Nunca a brisa se demora entre as dunas,
onde os barcos navegam sobre a espuma.
Tudo é secreto, se maio se repete
nas marcas da pureza recusada.
Um rosto ou um rio me fascinam,
quando a raiva e o sossego
me revelam a nascente
e, no meio das palavras,
procuro apenas um gesto
ou uma sombra.
Graça Pires
Quando Anoitece
Quando anoitece
contorno no meu rosto
o perfil do dia que passou
e tudo o que não sou
me contradiz.
Quando anoitece
atravesso um labirinto
caiado de paixão,
pretexto circular
da minha fé.
Quando anoitece
faço emergir do abismo
um instinto quase secreto
e fujo da noite,
em vertiginosa simetria com o vento,
como se fosse um equívoco
esperar a madrugada
com a mesma lentidão
de um acto íntimo.
Contra um muro branco
esta lonjura gémea do vento.
Uma casa ou um regaço
alternando a desordem
de corpos molhados
numa dicotomia simulada
quando o prazer
é o reflexo nítido
de um coágulo de azul
queimado sobre madrepérolas.
São corais que no fundo da água
não quebram as vagas silvestres.
Nasci agora
enquanto uma andorinha
baloiçava no espelho
atravessado de pólen.
Sou, sílaba por sílaba,
o luto ou a negação
de desumanos deuses.
Quando anoitece ...
Graça Pires
Interioridade
Aqui estou, cercada de mim,
melancolia trazida
do interior de um bosque,
silhueta a preto e branco
na figuração de um pássaro em vôo lento.
Há quanto tempo,
só eu sei quanto,
as amarras de um barco
se quebraram,
no interior frágil
do instante em que fui vento,
ou apenas um abandono breve,
como as mãos no acto de dar.
No ângulo do grito e da língua
se explica a leveza das lágrimas,
circunfluência no interior das pálpebras,
longínquo lago na cintura dos lábios.
Cheguei ao lugar onde se cruzam
todos os ventos sem hálito
e chamo pelo nome os frutos e a fome,
para que ninguém se comprometa
ao tocar nos meus ombros.
Graça Pires
Expressão
Dentro da curva inesperada
dos meus braços,
transbordam os gestos
numa espiral imperceptível.
Nas pontas dos meus dedos
se alonga a neblina
que deriva do inverso da loucura
quando prendo nos dentes
a superstição da lua
ou esboço no riso
a cumplicidade dos espelhos
timidamente transparentes
para dizer que só pelo silêncio
se vence o labirinto das palavras
e se mede a solidão.
Graça Pires
Amo pessoas que fazem uso dos seus cinco sentidos de maneira a agregar valor ao seu senso de discernimento e ao seu senso de valores humanamente reais, isentando-se do mundinho virtual e sabendo preservar o mundo descortinado que lhe rodeia com todas as suas nuances, diferenças e incompatibilidades. Não tem dinheiro que pague nem religião que acrescente ao poder de ser quem somos e de sermos aceitos do jeito que somos, porque dentro deste contexto somos pessoas muito melhores do que aquelas que se autodenominam boas por seguirem padrões convencionais e religiosos uma vez que, na real, sendo quem somos passamos a ter verdadeiros amigos para todas as horas e não só para as selfies coletivas.
Tudo que não exige empenho intelectual vira repetição, porém exercitar o intelecto deve ser uma ação repetitiva.
Fato é que não se consegue fazer pensar quem opta por se encantar. Uma das armadilhas do encantamento é justamente a impotência reflexiva.
Estou começando a me preocupar com a possibilidade de não ter outra alternativa senão considerar a semelhança entre as salas de aula e o congresso nacional diferenciando, apenas, o salários dos seus ocupantes com poder.
Sempre foi muito conveniente para algumas instituições, religiosas por exemplo, com o aval de muitos hipócritas da sociedade, pregarem a omissão, porque é pelo silêncio que as atrocidades se perpetuam.
Cada um escolhe a sua maneira de provocar a reflexão no outro e eu escolhi escrever, porém sem usar a sutileza como aliada mesmo sabendo que desta forma poucos são capazes de perceber, nas palavras rudes, a refinada intenção que está oculta nesta minha escolha. Tudo por uma questão de personalidade.
O Tempo só nos guia para frente, mas sempre que necessário nos leva para trás no veículo da memória para tentar fazer com que tenhamos uma melhor visão do verdadeiro sentido da direção que estamos tomando. E quando ele nos obriga a este retrospecto, em geral, colore de cinza as belas paisagens as quais deslumbramos durante a viagem ou dá cor ao preto e branco que se posicionou ao nosso lado como um carona.
Não deixe que te convençam que você é o único doente emocional neste mundo insano quando à sua volta há uma população de enfermos da alma descansando no suposto leito do "bem", na UTI do "equilíbrio", que está localizada no hospital da "hipocrisia", tratando suas consciências através da automedicação com paliativos de luz sagrada e sabedoria espiritual, pois a cura do mal que estes não veem em suas almas depende de uma cirurgia que eles pensam não precisar fazer e vivem a espera de um milagre para jamais receberem alta e poderem continuar intitulando os demais de loucos do mal.
Pessoas seguras e bem resolvidas não "vivem", indiscriminadamente, expondo suas vidas, com exceção das mal resolvidas e inseguras que aprenderam a controlar seus impulsos.
Há várias maneiras de admirar o outro e uma delas é invejá-lo, como também não elogiá-lo pelo seu brilho.
A modalidade de parto pelo coração foi a forma que a natureza encontrou de materializar o ato de dar a luz humana à pequenos raios de sol.
