Olhando pela janela, vejo o sol... Andrê Gazineu

Olhando pela janela, vejo o sol incidindo
Derrama luz na estante, no relógio, na maçaneta
Na ampla sala vazia de cor
A mesa está posta
Toalha branca, límpida, ingênua
Pratos limpos, panos largos, pães, leite



Não há ninguém à mesa
Há o silêncio, o abandono, o não ser
Rastros invisíveis, sombras do vácuo
Tudo passa despercebido e nada é nunca lembrado
É a transmutação do tempo
A natureza sendo absorvida
para que minha sala nunca envelheça
Para que seja embriagada
no meu próprio passado



A pergunta involuntária sem resposta
Provei à cereja ácida
Provei a angústia do momento em que nasci
O início, o vazio, a quitina negra do ferrão
O ponto letárgico onde a alma encontra barreiras tão obscuras...
E não pude seguir adiante



Dissoluto no fundo da morte
encontrei teu viço jovem, infantil, puro


Entendi o que é a paz;
essa alegria distraída de viver
este sopro macio no campo
Um rubor na face macilenta
Um instante estúpido contigo



Eu esperarei por ti
na vida, na morte, na distância
No delírio da febre, na tristeza do pranto
nas noites frias, nas minhas pálpebras fechadas



Nas águas turvas do meu sono
Sufocado no escuro, enlaçado na calada
Sentei-me no chão ouvindo o ruído do nada
Do sangue ascórbico corroendo faminto
Do coração pulsando agudo por instinto



Nega-te o alimento, o sustento diário
[nega-te a vida
Acostuma teu nome ao sinistro obituário


Roga-te a praga, converte-te em semente
E da moléstia, forma-te o carpelo
de um mundo inconsolável e belo,
doses excessivas duma fome demente



E não há mais miséria na aguardente
Nem pudor nas faces coradas
Os braços rasgados de cercas farpadas
O grito à ânsia, o fruto à serpente