A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO CÂNON... MARCELO CAETANO MONTEIRO

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO CÂNON BÍBLICO E SUAS VARIAÇÕES TRADICIONAIS.

Escritor:Marcelo Caetano Monteiro .

Uma análise histórica e acadêmica, redigida em linguagem catedrática e isenta de juízos confessionais, cujo objetivo é esclarecer quais livros foram incluídos ou excluídos dos diferentes cânones bíblicos, por quais razões, em que contextos históricos e por quais instâncias decisórias, sempre com base em fontes reconhecidas pela historiografia e pelos estudos bíblicos críticos.

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO CÂNON BÍBLICO E SUAS VARIAÇÕES TRADICIONAIS.

A Bíblia Sagrada não constitui uma obra unitária concebida de forma instantânea, mas um corpus textual progressivo, formado ao longo de mais de um milênio, atravessando múltiplos contextos culturais, linguísticos e institucionais. Sua configuração atual resulta de processos históricos complexos, nos quais intervieram comunidades religiosas específicas, critérios teológicos, usos litúrgicos e debates hermenêuticos prolongados.
Do ponto de vista estritamente histórico, o termo “cânon” designa o conjunto de escritos reconhecidos como normativos por determinada comunidade de fé. Tal reconhecimento não ocorreu de modo uniforme nem simultâneo entre judeus, cristãos orientais e cristãos ocidentais, o que explica as diferenças quantitativas entre os cânones.

O CÂNON JUDAICO E A DELIMITAÇÃO DO TANAKH.

A tradição judaica reconhece 39 livros, correspondentes ao que os cristãos denominam Antigo Testamento. Esses textos compõem o Tanakh, acrônimo formado por Torá, Neviim e Ketuvim. A consolidação desse cânon ocorreu de maneira gradual, entre os séculos V a.C. e I d.C., sendo tradicionalmente associada ao período pós exílico.
Do ponto de vista acadêmico, não há evidência conclusiva de um concílio formal único que tenha fechado o cânon judaico, mas sim um processo de reconhecimento comunitário, consolidado após a destruição do Segundo Templo em 70 d.C., quando os textos em hebraico e aramaico passaram a ser normatizados como expressão identitária do judaísmo rabínico. Textos preservados apenas em grego, ainda que amplamente utilizados por judeus helenizados, foram progressivamente excluídos desse corpo normativo.
Fontes históricas e filológicas indicam que o critério central foi a língua original, a antiguidade atribuída ao texto e sua conformidade com a tradição mosaica.

A TRADIÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA E A SEPTUAGINTA.

As primeiras comunidades cristãs, especialmente aquelas situadas no mundo greco romano, utilizaram majoritariamente a Septuaginta, tradução grega das Escrituras hebraicas realizada entre os séculos III e I a.C. Essa coleção incluía livros que não figuravam no cânon hebraico, posteriormente estabilizado.
Entre esses escritos encontram-se Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque, Primeiro e Segundo Macabeus, além de acréscimos a Ester e Daniel. Esses textos passaram a ser lidos liturgicamente, comentados por teólogos antigos e incorporados à tradição cristã como literatura edificante e doutrinária.

O CÂNON CATÓLICO E A DEFINIÇÃO DOS DEUTEROCANÔNICOS.

A Igreja Católica reconhece 73 livros, incluindo os chamados deuterocanônicos, termo que indica textos cuja aceitação canônica foi posterior, mas não secundária em autoridade. A consolidação desse cânon ocorreu progressivamente entre os séculos IV e V, com referências explícitas em sínodos regionais e, posteriormente, foi reafirmada no Concílio de Trento em 1545/6.
* Concílio de Trento
O Concílio de Trento foi uma série de reuniões realizadas pela Igreja Católica com o objetivo de combater a Reforma Protestante e manter a unidade e o poder da Igreja.

O Concílio de Trento foi uma série de reuniões realizadas pela Igreja Católica, no contexto da chamada Contrarreforma Católica, para combater os efeitos da Reforma Protestante. Foi realizado entre 1545 e 1563 na cidade que dá nome ao concílio. Dele participaram diversas autoridades da Igreja, mas nenhum papa chegou a participar diretamente de uma sessão do concílio.

Em partes o concílio realizou seus objetivos, pois manteve a maior parte da Europa latina católica, além de transformar a América Latina em um continente predominantemente católico.
Do ponto de vista histórico, essa decisão não teve caráter arbitrário, mas respondeu à necessidade de uniformização doutrinária, sobretudo diante das controvérsias do século XVI. A Igreja justificou a manutenção desses livros com base em seu uso contínuo, valor teológico, presença na Septuaginta e recepção patrística.

A REFORMA PROTESTANTE E A REDUÇÃO DO CÂNON.

Os reformadores do século XVI, ao privilegiarem o princípio da autoridade textual hebraica para o Antigo Testamento, optaram por adotar o cânon judaico de 39 livros, totalizando 66 livros ao incluir o Novo Testamento. Os livros deuterocanônicos não foram inicialmente rejeitados como espúrios, mas classificados como úteis para leitura, embora não normativos para fundamentação doutrinária.
Essa decisão foi tomada em um contexto de crítica à tradição eclesial medieval e de retorno às fontes consideradas mais antigas. O critério central foi filológico e histórico, ainda que inevitavelmente permeado por pressupostos teológicos.

A TRADIÇÃO ORTODOXA E A PRESERVAÇÃO AMPLIADA.

As Igrejas Ortodoxas, particularmente as de tradição grega e eslava, reconhecem 78 livros, preservando um cânon ainda mais amplo, que inclui textos como Terceiro Macabeus, Salmo 151 e Oração de Manassés. Essa configuração reflete a continuidade do uso litúrgico da Septuaginta sem as delimitações posteriores impostas no Ocidente.

CONSIDERAÇÕES PAUTADAS EM INDÍCIOS ACADÊMICOS FINAIS.

Sob a ótica historiográfica, as diferenças canônicas não devem ser interpretadas como supressões ideológicas arbitrárias, mas como expressões distintas de processos históricos legítimos, condicionados por língua, geografia, tradição interpretativa e autoridade institucional. A noção moderna de autoria, fixidez textual e canonização formal não se aplica plenamente a sociedades antigas, nas quais o texto era sobretudo um organismo vivo, transmitido e interpretado comunitariamente.
Assim, a Bíblia, enquanto o mais difundido conjunto de textos da história humana, permanece também um testemunho eloquente da pluralidade de caminhos pelos quais a tradição escrita se consolidou, preservando no tempo a memória espiritual de civilizações inteiras e reafirmando que a história do
" sagrado" é, antes de tudo, a história da transmissão da palavra através dos séculos.

INFORMAÇÕES BASES:

A seguir Uma elucidação conceitual esforçada e rigorosa, em linguagem acadêmica e tradicional, explicando os principais termos utilizados nos estudos bíblicos, históricos e religiosos, com atenção especial à sua origem etimológica, sentido técnico e uso no campo científico, evitando qualquer viés apologético.

TEOLOGIA.

A palavra teologia deriva do grego antigo “theós”, que significa Deus, e “lógos”, que significa discurso, razão ou tratado. Em seu sentido clássico, teologia é o campo do saber que se dedica à reflexão sistemática sobre o divino, suas manifestações, atributos e relação com o mundo e com o ser humano.
No âmbito acadêmico, a teologia não se restringe à fé pessoal, mas constitui uma disciplina hermenêutica e histórica, que analisa textos sagrados, tradições religiosas, dogmas e práticas cultuais. Quando falamos em teologia bíblica, referimo nos ao estudo do pensamento religioso presente nos textos bíblicos, considerando seu contexto histórico, literário e cultural.

FILOLOGIA.

Filologia tem origem no grego “philía”, amor ou apreço, e “lógos”, palavra ou discurso. Trata se da ciência que estuda os textos antigos a partir de sua língua original, analisando vocabulário, gramática, variantes manuscritas e evolução semântica.
No estudo da Bíblia, a filologia é essencial porque os textos bíblicos foram redigidos principalmente em hebraico, aramaico e grego antigo. A filologia permite identificar alterações textuais, compreender expressões idiomáticas próprias da época e reconstruir, com o máximo de fidelidade possível, a forma mais antiga dos escritos.

SEPTUAGINTA.

O termo Septuaginta refere se à tradução grega das Escrituras hebraicas realizada entre os séculos III e I antes da era cristã, sobretudo em ambiente judaico helenizado. O nome deriva do latim “septuaginta”, setenta, em alusão à tradição segundo a qual setenta ou setenta e dois sábios teriam participado da tradução.
Do ponto de vista histórico, a Septuaginta é fundamental porque foi a principal Bíblia utilizada pelos judeus da diáspora e pelas primeiras comunidades cristãs. Ela contém livros e passagens que não constam no cânon hebraico posterior, o que explica sua relevância na formação dos cânones cristãos católico e ortodoxo.

CÂNON.

A palavra cânon provém do grego “kanón”, que significa regra, medida ou norma. No contexto bíblico, cânon designa o conjunto de livros reconhecidos como normativos e autorizados por uma comunidade religiosa específica.
Do ponto de vista acadêmico, a canonização não é um ato instantâneo, mas um processo histórico de reconhecimento progressivo, baseado em critérios como uso litúrgico, antiguidade do texto, coerência doutrinária e autoridade atribuída à tradição que o preservou.

DEUTEROCANÔNICOS.

Deuterocanônico deriva do grego “deúteros”, segundo, e “kanón”, regra. O termo indica livros cuja aceitação canônica ocorreu em um segundo momento histórico, embora sejam considerados plenamente inspirados dentro das tradições que os reconhecem.
Esses textos estavam presentes na Septuaginta e foram amplamente utilizados na Antiguidade cristã. O termo não implica inferioridade literária ou teológica, mas apenas um processo distinto de reconhecimento em relação aos livros protocanônicos.

APÓCRIFOS.

Apócrifo tem origem no grego “apókriphos”, oculto ou reservado. Historicamente, o termo designava escritos destinados a círculos restritos. Com o tempo, passou a indicar textos religiosos antigos que não foram incluídos no cânon oficial de determinadas tradições.
Na pesquisa acadêmica, os apócrifos são valiosos para compreender o ambiente religioso, simbólico e teológico do judaísmo e do cristianismo primitivos, ainda que não sejam considerados normativos por comunidades confessionais.

HERMENÊUTICA.

Hermenêutica deriva do verbo grego “hermēneúein”, interpretar. Trata se da ciência da interpretação dos textos, especialmente textos antigos e sagrados.
No campo bíblico, a hermenêutica busca compreender o sentido original de um texto, levando em conta o contexto histórico, o gênero literário, a intenção do autor e a recepção comunitária. Ela distingue a leitura literal, simbólica, histórica e teológica.

EXEGESE.

Exegese provém do grego “exēgéomai”, conduzir para fora ou explicar. Diferentemente da leitura devocional, a exegese é uma análise crítica e metódica do texto, com base em dados linguísticos, históricos e literários.
A exegese moderna procura responder ao que o texto significava em seu contexto original, antes de discutir aplicações posteriores.

TRADIÇÃO.

No sentido acadêmico, tradição refere se ao processo de transmissão de textos, interpretações e práticas ao longo do tempo. A tradição não é mera repetição, mas um movimento contínuo de preservação e releitura.
No estudo bíblico, tradição escrita e tradição oral caminham juntas, sendo fundamentais para compreender como os textos chegaram à sua forma atual.

CONSIDERAÇÃO.

Esses termos constituem o vocabulário técnico indispensável para qualquer abordagem séria e histórica da Bíblia. Compreendê los é reconhecer que o texto sagrado não surgiu isolado no tempo, mas foi cuidadosamente transmitido, interpretado e preservado por comunidades humanas concretas, cujo esforço intelectual e espiritual atravessou séculos e moldou a própria história da civilização.