A Razão como Eixo da Pureza... Marcelo Caetano Monteiro

A Razão como Eixo da Pureza Doutrinária: A Disciplina e a Clareza segundo a Revista Espírita (1864–1868)

As páginas da Revista Espírita órgão experimental e filosófico dirigido por Allan Kardec constituem o laboratório vivo no qual se depuraram critérios, métodos e advertências para a preservação da essência racional do Espiritismo nascente. Entre essas orientações, destacam-se duas declarações fundamentais, ambas estruturadas como balizas de higiene doutrinária:

1. a exigência de disciplina rigorosa (abril de 1864),

2. e a reafirmação de que a Doutrina deve ser sempre clara, simples e racional (dezembro de 1868).

A seguir, apresento uma análise mais profunda, contextualizada e ampliada dessas diretrizes kardecianas, com fontes fidedignas da própria Revista Espírita, conforme sua preferência.

I — Abril de 1864: A Disciplina Doutrinária como Defesa contra a Deriva Mística.

Fonte: Revista Espírita, abril de 1864 — artigo “Autoridade da Doutrina Espírita”.

Kardec demonstra preocupação manifesta com a vulnerabilidade do Espiritismo nascente diante de dois perigos recorrentes:

1. O maravilhoso sem critério.

Ele denuncia as “tendências para o maravilhoso”, típicas de correntes espiritualistas pré-kardecistas, que acolhiam qualquer mensagem espiritual como verdade absoluta. Kardec afirma que a autoridade doutrinária não poderia repousar na mediunidade isolada, mas apenas: na concordância universal dos ensinos dos Espíritos superiores; na lógica rigorosa;

na verificação pelo bom senso;

no afastamento de todo ritualismo ou práticas exteriores.

Essa posição não é apenas disciplinar, mas,
*epistemológica ( Epistemologia é o ramo da filosofia dedicado a compreender como o ser humano ou a ciência adquire, valida e justifica o conhecimento. Seu objetivo é identificar as condições necessárias e suficientes que tornam uma afirmação aceitável como verdadeira. O termo deriva do grego episteme (conhecimento) e logia (estudo) sendo também chamada de teoria do conhecimento ou filosofia da ciência.).

trata-se de impedir que o Espiritismo fosse confundido com escolas místicas ou mágicas. Kardec diz explicitamente que uma doutrina que cede ao maravilhoso perde sua razão de ser e torna-se presa de imaginações individuais.

2. O risco da “inflação mediúnica”

Nesse número da Revista, Kardec adverte também para o fascínio que muitos médiuns nutriam por mensagens supostamente elevadas, mas impregnadas de vaidade espiritual. Ele afirma que:

“A primeira garantia da verdade é o caráter dos Espíritos.”

Portanto, a disciplina doutrinária não é opressão: é método.
É uma higiene do pensamento.
Uma defesa preventiva contra a adulteração do conteúdo doutrinário.

3. O objetivo maior: preservar a credibilidade da ciência espírita.

Kardec escreve que, sem essa disciplina racional, o Espiritismo:
_ se tornaria presa de fantasias;
_ perderia respeitabilidade;
_ deixaria de ser ciência de observação e filosofia moral.

Assim, a ordem de abril de 1864 é clara:
Rigor, razão, método, universalidade e ausência de rituais.

II — Dezembro de 1868:
A simplicidade como Alma do Espiritismo.

Fonte: Revista Espírita, dezembro de 1868 — artigo “O Espiritismo é uma Religião?”.

Nesse momento, às vésperas de sua desencarnação, Kardec sintetiza a identidade essencial da Doutrina. Seu objetivo é evitar que o Espiritismo, já difundido, se transformasse em igreja, reduzindo-se a um conjunto de formas exteriores.

1. A defesa da simplicidade essencial.

Kardec reafirma que o Espiritismo deve ser:
_ claro, sem alegorias enigmáticas;
_ simples, sem aparato cerimonial;

_ racional, sempre submetido ao crivo da observação e da lógica.

Ele insiste que tudo o que complica obscurece.
E tudo o que obscurece contradiz a missão iluminativa da Doutrina.

2. O combate ao formalismo.

No texto, Kardec critica explicitamente:
_a tentação de transformar reuniões em cultos;
_títulos, vestes, cerimônias e fórmulas;

práticas exteriores que obscurecem o espírito da moral de Jesus.

Para ele, o Espiritismo é:

“uma ciência de consequências morais”,
não um ritual a ser executado.

3. Uma doutrina acessível a todos.

A clareza não é pobreza é fidelidade.
A simplicidade não é ingenuidade — é método pedagógico.
A razão não é frieza é segurança na caminhada espiritual.

Kardec reafirma que a Doutrina deve ser compreendida por qualquer pessoa, sem a necessidade de intermediários, como liturgias ou simbolismos.

III — Unidade Doutrinária: A Razão e o Bom Senso como Colunas da Codificação.

Ao unir as edições de 1864 e 1868, vemos um princípio axial:
sem razão, o Espiritismo se corrompe; sem simplicidade, se desfigura.

As duas orientações se complementam:

A disciplina rigorosa impede a entrada do misticismo e do sensacionalismo.

A simplicidade racional impede o surgimento de dogmas e rituais.

Ambas constituem a invariância da Doutrina.
Ambas refletem o pensamento de Kardec até o fim de sua obra terrena.

Conclusão.

O Espiritismo, segundo Kardec, é:

experimental na investigação dos fenômenos,

racional na análise dos ensinos,

ético na aplicação moral,

simples na forma,

e profundamente transformador em seu conteúdo.

As advertências de 1864 e 1868 não são meras considerações históricas; são pilares permanentes para qualquer movimento sério que deseje preservar a codificação como ciência e filosofia moral, evitando o desvio para simbolismos exteriores ou para a superstição moderna travestida de espiritualidade.

No centro, permanece o mesmo princípio:

O Espiritismo só tem força moral se permanecer fiel à razão
e só tem força iluminativa se permanecer fiel à simplicidade.