⁠Tinha onze anos quando passava em... Marina Lodi

⁠Tinha onze anos quando passava em frente a uma loja de consertos gerais. Galpão à frente e quem estendia a vista achava prateleiras empoeiradas com quinquilhar... Frase de Marina Lodi.

⁠Tinha onze anos quando passava em frente a uma loja de consertos gerais. Galpão à frente e quem estendia a vista achava prateleiras empoeiradas com quinquilharias disputando espaço. À direita haviam eles: três periquitos amarelos de bochechinhas vermelhas.
De segunda a sexta me pareciam tão felizes quando possível, já aos finais de semana, quando o dono estúpido os deixava naquele cubículo sem janelas, arrulhavam incessantemente.

Pensava eu que deveriam ter vivenciado aquela escuridão diversas vezes, mas, pela ferocidade com que piavam, sempre se esqueciam de modo com que jamais poderiam se acostumar com a aparente novidade.
À época não consegui cogitar castigo mais cruel e muito sofisticado, já que foi forjado de maneira não intencional; disse que o dono da loja me parecia um completo obtuso, então não se pode culpá-lo. Atribuí o responsável pelo castigo como sendo Deus que, ou era um sacana ou um irresponsável que vê o erro de sua cria e não a corrige; mesmo que o erro cause grande dor a outro. Haveriam mesmo favoritos?
Não dormi a noite.

Mas eu via que o que fechava a loja era um cadeado e sabia que uma chave estrela, como a que minha família tinha, quando engatada corretamente no cadeado cria um efeito alavanca que o quebra.
Domingo esperei que o mundo dormisse e saí.
O vento vindo da Serra do Curral era fresco e a lua cheia, tão insone quanto eu, me acompanhava quieta e impassível, dessensibilizada pelo tédio de quem já viu tudo.
Alcancei a loja e o silêncio era sepulcral quando meti o pé na alavanca improvisada e o cadeado caiu no chão de lajotas vermelhas. Abri uma fresta. Tomei para mim os periquitos que há pouco dormiam na gaiolinha.

Em casa os escondi no jardim da melhor forma que pude. Na segunda feira, quando ficava sob os cuidados da faxineira e da televisão, os retirei.
Me olhavam com uns olhos lindos, puros e infantis. Não piavam, apenas me encaravam curiosos.
Meti rápido a mão na portinhola para libertá-los. Esta era a minha mais honesta intenção, pois não se podia contar com o bom senso dos adultos nem de Deus e aquilo me afligia profundamente. Antes, olhei mais uma vez para aqueles olhinhos tão puros.
A impotência que vi me deu ódio. A incapacidade de lutarem por si me causou profundo desprezo. De maxilares tensos, contei dez segundos, lentamente, na esperança de que piassem para que o som desfizesse minha ira, mas o silêncio era ensurdecedor "burros!", "incompetentes!" Compreendi que salvei-os porque a aventura me apetece, não por bondade.
Os prendi em um armário escuro e os deixei. A sumária traição, a maldade deliciosa e irracional, além do esvair das esperanças tão dadas como certas dos periquitos, caso pudessem compreender o que se passava, pintaram-me um enorme sorriso. Naquele momento não compreendi Deus, mas ao menos a humanidade.
Dias depois, foram encontrados mortos.


Madrugada de oito de junho, finalizado dia 30 de dezembro de 2022