Fernando Pessoa Mudanca
Sempre encontro a quem magoar com uma palavra ou um gesto. Mas nunca alguém que eu possa acariciar os cabelos, apertar a mão ou deitar a cabeça no ombro.
Eu estava a ponto de sentar numa daquelas calçadas tortas,(...) enterrar a cabeça nas mãos e chorar e chorar pelo tempo perdido, pela falta de sentido, pela minha derrota.
Eu fico completamente baratinado quando começam a me perguntar o que vai ser, o que vai acontecer com tal coisa. Sei lá, eu não sei onde é que eu vou estar amanhã. Eu sei o quê que eu estou fazendo hoje. Agora, o resto não interessa.
Fico tão cansada às vezes, e digo pra mim mesma que está errado, que não é assim, que não é este o tempo, que não é este o lugar, que não é esta a vida. E fumo, e fico horas sem pensar absolutamente nada: (...)
Claro, é preciso julgar a si próprio com o máximo de rigidez, mas não sei se você concorda, as coisas por natureza já são tão duras para mim que não me acho no direito de endurecê-las ainda mais.
É preciso cuidado com o arisco, senão ele foge. É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo.
Ah, que banal. Até que ponto as circunstâncias não me favorecem, ou eu é que não favoreço as circunstâncias?
Quando resolvi fugir daquelas coisas torpes lá de fora não pensei que fosse tão fácil: na verdade foi tudo muito natural, como se um dia isso tivesse mesmo que acontecer, e exatamente dessa forma. Não precisei fazer esforço algum. Só deitar e esperar. A princípio ainda classificava lembranças e memórias, tinha consciência de um antes, um durante, um depois, de um real e um irreal, um tangível e um intangível, um humano e um divino: separava minha memória e meus conhecimentos em partes cuidadosamente distintas. Depois que ele começou a rondar minha janela, ou antes, não sei, tudo se confundiu num só bloco, e fiquei assim: esta massa compacta toda à superfície de si mesma. Não lembro de ninguém assim tão à flor de si mesmo: raiz, caule, folhas e frutos. Talvez eu esteja sendo gerado, não sei. Sei que falta pouco. Eu queria que não fosse assim, que não tivesse sido assim. Mas não consegui evitar. A semente recusava-se a vir à tona, eu nem sempre tinha tempo ou vontade de regá-la, e não chovia mais – foi isso que aconteceu.
Canto porque cantar me dá um sentido. Mas penso sempre que cantar é inútil. Não quero nenhuma das coisas que o canto poderia me dar. Quero encontrar outra coisa. Outra coisa que nem sei o nome, maior que eu mesma ou que qualquer canção.
Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco – todas as pessoas são loucas, inclusive nós; amor encabulado – nós, da fronteira com a Argentina, somos especialmente encabulados. Mas amor de verdade. Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto.
Ficam intimados os humanos a interromper as dores, a esquecer as mágoas, a adiar as dívidas, a perdoar os outros.
Só quero ir indo junto com as coisas, ir sendo junto com elas, ao mesmo tempo, até um lugar que não sei onde fica, e que você até pode chamar de morte, mas eu chamo apenas de porto.
Você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu...