Coleção pessoal de robertleroy

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Desnutrição

Ao chupar o seio da sociedade
Como um bezerro faminto que suga as tetas da progenitora
Engasgo-me sempre, não por ir com demasiada sede ao pote
Mas pela náusea e ânsia de vômito que me dá
Ao provar do alimento que ela me oferece

Bernardo Almeida (Livro Crimes Noturnos)

Institucionalizado

Vitimado, constrangido, monitorado
Humilhado, oprimido, controlado
Vigiado, atacado, manipulado
Seduzido, induzido, conduzido
Enganado, traído, castrado
Encarcerado, silenciado, evitado
Doente, rejeitado, humilhado
Discriminado, violentado, trapaceado
Abocanhado, acorrentado, apanhado
Sufocado, apaziguado, maltratado
Rotulado, legislado, cadastrado
Corroído, descaracterizado, padronizado
Registrado, aprisionado, formulado
Inanimado, abatido, indolente
Indiferente, esquecido, carente
Apático, acomodado, conformado, inconsciente

Bernardo Almeida

Mutação

Passei tantos anos sob o olhar infecundo da luz
Que comecei a acreditar não haver forma, distinção e equilíbrio na escuridão
Porém, em poucos e insensatos minutos, as aparências fáceis se transformam
Em delineamentos perfeitamente disformes, depurados e apurados

À mostra está unicamente a máscara da perfeição
Estúpida, monstruosa, egocêntrica e ilusoriamente independente
Não consegue sequer transpor a barreira das aparências
E desenvolver uma percepção transmutada, aguçada e expandida

Focalizo o espaço em que me encontro, extraído de mim mesmo
Cem vezes mais vasto, absurdamente amplo e copioso
Redimensiono as minhas perspectivas para chegar perto daquilo que busco
E ganho nova alma para compreender o que está sempre além

Inusitadamente a obviedade torna-se um insulto insuportável
Fugindo das similitudes, não sinto-me atraído por qualquer oposto
Agora nada pode guiar-me senão a voz da intuição
Desvendado pela lupa do auto-conhecimento, tornei-me eu mesmo
Indefinível, inimitável, irreproduzível, insondável e ambíguo
Um vulto cintilante na claridade sombria

Bernardo Almeida (Livro Crimes Noturnos)

Molho requentado

Um brinde à morte
Esta idônea rapariga
Que de tão especial que é
Restringe-se a aparecer
Uma única vez em cada e toda vida

Desapego real

Vejo do alto do sublime castelo do perdão
Rainhas e reis deitados com a face virada para o chão
Admitem e arrependem-se dos seus erros
E pedem que suas cabeças sejam cortadas com rapidez e zelo

Mas não precisa desta atitude radical
Chega de sangue derramado em nossos quintais
As sobrancelhas franzem-se todos os dias
Porque entre homens violentos e selvagens
Faz-se presente diariamente a covardia

Apenas levem em seus corações a lição
Larguem todo o ouro e a prata no chão
As vestes e os reinos, coletivize-os agora
E liberte-se da praga miserável do apego

Bernardo Almeida (Livro Crimes Noturnos)

Deuses e demônios

A mentira faz dos homens homo sapiens
Os demônios são todos assim
Tenho conversado com dezenas deles
Porém, os deuses aspiram a perfeição

Ambos falham e mentem em formas
E em conjecturas arrogantemente expostas
Mas subdividem-se em bem e mal
Sois o que podeis captar da natureza

Exércitos são formados em nome do ódio
Mas no amor de um Cristo qualquer, velho e ultrapassado
Encontram a sua justificativa para matar e oprimir
São todos servos de uma estupidez esquálida
De um sinal que não deveria ser dado
E de divindades mortas, mas logo ressuscitadas
Nos túmulos do fanatismo catártico das religiões


Bernardo Almeida (Crimes Noturnos)

O veneno da saudade

Perdoei a ti sem que me pedisses
Porque não consigo guardá-la como um espinho em meu bolso
E se digo que suporto a dor que me causaste
É porque de ti, apenas a presença bastaria

Sento e rememoro os encontros às escondidas
Das manhãs às tardes, e, das noites às madrugadas
Como éramos imaturamente descuidados e felizes
No entanto, jamais fomos pegos em flagrante
Eis a invejável sorte dos ardorosos amantes

Minhas mãos sutilmente vacilantes em seu corpo
Suas pernas a cambalear a cada toque
Minha voz a embargar após atender aos seus pedidos mais carnais
Éramos um espasmo lunar

O que seria de mim sem aqueles saudosos dias
Em que o fulgor do amor, ainda jovial, falava mais alto?
O que seria do vento não fossem seus cabelos para bagunçar
E o seu perfume a espalhar e distribuir graça ao mundo?
Portanto digo, com carinho: perdôo-te sem que me peças
Porque de ti, quero apenas guardar a ternura e a beleza
Dos momentos brevemente eternos que dividimos um dia

Bernardo Almeida (Livro Crimes Noturnos)

Palavra

Uma palavra pode ser proferida
E esquecida com o tempo
Outra pode ser aquecida e sentida
Além da eternidade
Uma palavra pode ser mantida
Pode ser vencida
Pode ser transformada
Pode ser omitida
Pode ser deturpada
Pode ser lembrada
Uma palavra
Afasta o homem da ignorância
Aponta a saída do labirinto
Fantasiosa ou realista
Carrega vida em seu sentido
Uma palavra
Quando lançada
Não tem rumo
Não tem caminho certo
Trilha ao impulso do vento
E na velocidade do pensamento
Segue firme, vaga e veloz
Como uma flecha
Pode destronar uma certeza
E como uma chama
Pode transformar corações em brasa
Uma palavra
Simples e inútil
Pode mudar o mundo
Pode ultrapassar uma crença
Pode desatar nós e preconceitos
Pode vencer uma guerra
Aquela mesma palavra
Esquecida em meio a tantas outras
Na página amarelada de um livro qualquer
Pode ser a salvação
Ou a perdição
Na vida de alguém
Uma simples e imperfeita
Palavra

Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)

Inadequado

Eu não nasci para essa vida banal
Uma rotina e um emprego convencional
Isso me soa marasmo
Faz tudo que é belo
Se tornar igual e chato
Nada é mais estático
Do que esse pobre padrão
Que cria a cada dia um novo lunático
Ou um perigoso ladrão
Sou volátil como o álcool que bebo
Sou daqui e dali
Posso querer ser o mar
E, em segundos, desistir
Sou da vida
Sou da natureza
Sou sem pudor
Sou no frio, o calor
Sou do amor
Sou do amor

Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)

Vira folha

Se soubesses da minha dor
Falarias de forma suave
Sua voz aguda é uma gafe

Permita-me dizer
Que não mereço tal desprazer
Mesmo assim ainda desejo você

Olhe-me de frente
Estou lhe pedindo perdão
Mas que erro cometi?

Estou me humilhando
Matando sem dó o orgulho
Residente neste ser vaidoso

Coloque-se no meu lugar
E deixe os velhos pecados para trás
Vivo em busca de femininos lábios, prazer voraz

Penteie os fios do ciúme tecidos em lã
E não mais traga a sua irmã
Senão desse amor outra vez me apoderarei

Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)

Recolher

Sonhar tornou-se pecado
Deita-te sob a lama que se forma
E conforma, resignação que me traz ânsia

Enojo-me dos seus beijos
Seu hálito é fétido
Diz-me que a vida é assim

Não quero entender seus propósitos
Você não tem alma
E ainda resta-me o direito de manter a minha

Abaixo da terra, sua dignidade
Acima dela, suas futilidades
Faço parte daquilo que foges

Imagens de pedaços de nada
Que juntas sem porquê
No entanto, continuas a recolher

Papéis aos montes
Como um catador de lixo
Abutre mórbido

Comes a carniça
E a vida que conhece e prova
Vem da morte alheia

Seu corpo está deformado
E ainda consegues sentir-se belo
A soberba é a bala que carregas na testa

Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)

Sem destino

O vento é frio e a noite tão acolhedora
Solitária e nublada como minha sorte
Leste, oeste, sul e norte
Uma bússola quebrada, desvairada

Aponta para o nada e diz tudo
Envia-me ao caminho menos oportuno
Como um beijo derradeiro inalcançado
Ou a cartada que precede a derrota

Fora de contato, escondo segredos
Que anuncio apenas à minha sombra
E nem mesmo dela guardo confiança
Quantas vezes não me traiu com certezas dúbias?

Serei o penúltimo cavalheiro
Aquele que leva as flores
Mas nunca termina com a dama
Estou fadado às despedidas e prêmios de consolação

Serei então os restos do perdão
Os ossos por trás de qualquer beleza
A segunda-feira, a ressaca, as súplicas
A humilhação, a tristeza, o medo de perder-te

Mas diziam que o amor eleva?
Conheci do paraíso às trevas
E resido na instabilidade sem prescrição
Tão perigosa quanto a própria vida

Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)

O resto

Dias tristes
Seguem-se um após o outro
Noites chuvosas e manhãs secas
No bar, deposito as minhas incertezas amorosas

Atrás de ti, não me reconheço
Ao seu lado sou completo
Mas meus versos não rimam com o seu nome

Sou andarilho, sou permissivo
Vejo seu corpo e cobiço-o
Mesmo que finja não enxergar-me

Em punho, outro poema
Para cantar a desilusão
Os desencontros e as armadilhas

Em princípio, sou o fim
E coloco-me a sua disposição
Sempre alheio aos acontecimentos

Bata em minha face
Derrame sobre mim a mais fria água
E desperte-me deste sonho inoportuno

Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)

Incógnita

O que tenta dizer-me esse olhar
Profundamente misterioso
Que se esconde por detrás
Dessa placa de gelo e vidro

Talvez diga que me ama
Mas poderia também zombar
Dos meus elogios óbvios
Da minha solicitude exagerada

Quero dar o que te falta
Mas, afinal, o que te falta?
Seus olhos saltam de espanto
Escondem respostas e choram

Quem dera tivesse eu desenvolvido
Os dons espirituais da mediunidade
Atravessaria seus pensamentos
E, em meio ao veneno, encontraria o antídoto

Mas tudo o que me cabe
É sentar ao seu lado
E partilhar o silêncio cúmplice
Da incógnita dos seus sentimentos

Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)

Dez encontros

Nossos encontros renderam-me quinze poesias
Mas isso é tudo, preciso ir-me sem titubear
Se queres que suma, assim o farei

Pude escolher entre dizer adeus por bem ou por mal
Entre sair amando triste ou com raiva
Chorando de ódio ou de alegria

Vi o amor começar a surgir em seu olhar
Nem tinha pedido, nem tinha forçado
Percebi seu esforço inútil para tentar controlá-lo

Então a noite chegou, não para nos acolher
E as estrelas atestaram muito bem suas palavras
Nem motivos, nem nada, apenas “Não quero mais ver-te”

Fui julgado, injustamente visto como culpado
Minhas emoções foram menosprezadas
Ao rastejar, perdi a última coisa que me sobrava

Volta e meia, penso em escrever-te algo
Sei que nunca estarei completamente curado
Do infortúnio do esquecimento, duro fardo da separação

Perseguirei sem fim o seu cheiro
Em qualquer mecha loira que cruzar-me a vista
Tornar-me-ei um ser mesquinho, não oferecerei além do mínimo

E quando, ao acaso, acreditar sentir a sua presença
Ainda que não faça mais diferença
Estou certo de que passarei uma semana sem dormir

A vida, então, não valerá a pena
Até que a sua voz serena volte a massagear-me
Fazendo ecoar notas sublimes em musicalidade e amor

Bernardo Almeida

Adeus

Minha inspiração
Deita morta a sete palmos do chão
Junta aos vermes que aceleram minha decomposição

O corpo, um dia célebre
Agora fede, apodrece
Não fala, não pensa, perece

Sirvo-me da companhia das criaturas subterrâneas
Que sobrevivem da fatalidade alheia
Tal qual o invejoso, de caráter desfalcado

Funesta realidade, triste sinceridade
Guarda a conclusão angustiante de um ciclo
Que se basta sem desejar mais tempo

Bernardo Almeida

Imundo

Mundo vil
Cheio de seres não menos desprezíveis
Sob o comando do Imperador Egoísmo
Estão todos os condenados à existência

Mundo degradante
Extremamente frustrante é ver
As desigualdades tão frequentes
Na mão de quem pede e no bolso de quem paga

Mundo fétido
Corrompido pela ambição e pela disputa
Onde cresce a violência e o ódio
E a vida bela e pura pede para perder a inocência

Mundo catastrófico
Em que a vingança anda solta pelas ruas
E tudo é permitido desde que seja comercializável
Financeiramente multiplicável, rentável

Mundo decadente
Espera teu futuro um tanto óbvio
Da abundância à precariedade
Da vida à extinção da humanidade

Bernardo Almeida

Falibilidade

Senta só este pobre
Ainda sonha, ilude-se
Vive desta crença e melhora

Um coitado aos olhos elitistas
Um forte, um bravo
Vigoroso em seus ideais

O soco contra a covardia
O arroto diante da boa educação
A revolta, a espontaneidade, a graça

Um papel, só um bilhete
Anunciando o próximo encontro
Já não será tão breve

Está de pé, ainda
Inabalado e coerente
O tal quebra-correntes

Corre a todo o tempo
Do tempo que lhe foi imposto
E não desiste

Queimando panos e papéis
Jamais se curva, jamais entoa hinos
E à autoridade oferece seu repúdio

Andarilho livre
Que se nega a aceitar presentes, suborno
E bebe da fonte, não do copo

Vejam, estão limpos
Mas fazem questão em rolar na lama
Gostam de emporcalhar-se

Espíritos asfaltados
Nu e cru, vasto e fértil
Um dia falecerão todos de fome

A ganância de uns
A ambição de outros
E a morte da maioria

Em resposta, a disposição em dizer não
Bater sem as mãos
E ainda assim agredir

Ferir, desagradar e continuar a sorrir
Violar, destruir, destronar
Para distribuir felicidade entre os injustiçados

Bernardo Almeida

Perdedor

Eu perdi
E perco quase sempre
Por opção

Mas o fracasso traz um gosto
Ao qual me familiarizo facilmente
A perda é ridícula perto da lição

Do erro faço novas escolhas
E das escolhas, encontro novas opções
Toda correção exige tempo

Não tenho pressa
A persistência é o aprendizado
O aperfeiçoamento é constante

Sem desanimar
Vejo o quanto tudo é fútil
Sutilmente apressado e finito, solitário

Bernardo Almeida

É

Vontade é não morrer
Desejo é amar
Pressa é não chegar
Preguiça é trabalhar

Tempo é inovar
Trilha é desviar
Velho é reciclar
Vento é navegar

Conhecer é renascer
Partilhar é cooperar
Amizade é confiar
Surpresa é desafiar

Sono é sonhar
Acordar é realizar
Tentar é persistir
Conseguir é acreditar

Bernardo Almeida