Coleção pessoal de Passaroverde

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Acordo com os pés na cabeça. Desperto com desejo de sono, de sonho. Desejo beijar meus próprios lábios, todavia minha boca está colada no meu umbigo. Não há nenhum som produzido pelo exterior, apenas alguns estalos promovidos pela minha ossatura pélvica.

Tenho a ligeira impressão que me conheço, isto é falso. Tudo em mim é falso. Não sou real. Caminho sobre minha cabeça e sinto que sou composto por multidões. Há uma população de formigas constituindo-me sem cessar de pedaços de folhas, sementes, galhos e grãos de açúcar furtados.

O amor, na verdade, não existe; é falso. As formigas me alertam.

Na verdade, não tenho pretensão de ser uma forma identificada, compreendida. Alegro-me em ser um nada. Trata-se de uma alegria triste e confortável no seu desconforto. O nada é disforme. Nesse sentido as possibilidades de existir de modo inadequado, irregular, que apresenta deformação; me tornam infinito. Não tenho dentro nem fora. Os pássaros me acalentam no meu estado de deformidade. O cosmo diz de mim, como também, o singular pássaro que em sua multiplicidade rodopia em um silêncio que berra no vento.

Um café amargo numa xícara branca esfria sobre a escrivaninha. O corpo em estado de adormecimento escreve no ar
...
Tenho me deixado cruzar, atravessar pelos fluxos da paixão. Meadas de força que invadem, rasgam o corpo. Cortado em vários pedaços, inebriado por tudo que parte, divide, estilhaça, sigo. O que escrevo? Um borrão, um esboço, um emaranhado de riscos entrecruzados que preenchem o espaço sem tempo.

A paixão por toda espécie de coisas lateja em mim. Minha fala se caracteriza por um timbre rouco, um som grave, uma vós áspera, roufenha – isto não é importante. Paixão: palavras, imagens, dentes; barba, sono, sonho, fantasia; tenho inventado o meu próprio mundo fantástico no qual os desejos mais submersos emergem.

Estou apaixonado por certo sorriso proibido, encantado pelos sons dos pássaros e pela confluência das águas que correm sem imediatismo: não há urgência no seu percurso. As horas como um longo tapete vermelho se estendem – recolho os olhos. Tenho dado lugar cotidianamente para as utopias, tenho vivido lugares fora de todos os lugares. Por vezes encontro-me nos desencontros. Sinto saudade da sensação dos olhos molhados, derretendo como um sorvete salobro sobre a pele do rosto, sobre a maciez dos lábios que esqueceram o gosto do beijo

(...) ventos suaves que contornam o corpo.
Que desejam dizer-me de si. Ouço no instante cantarem no tempo e desfazerem-me a pele. Recolhem-me, soltam-me no mar. Um Soltar que parece eterno ser. O tempo escorre lentamente. Deixa-me preso na liberdade do ar

Júnior Mendes

Perder-se em si é necessário por vezes. Aparar as gotas doces da chuva na língua é aquoso e salutar. Fugir sem medo e sem ter para onde ir é adequado. Se adequar em meio as pedras é possível.

Voar na mesma velocidade dos pássaros,
tocar a luz das estrelas com os pés, nascer num manancial, desaguar no mar, nadar de mãos dadas com cavalos-marinhos; lavar as mãos com açúcar, beber as nuvens, abraçar o vento, dançar...

Soltar-se é uma poesia trágica, é um poema sem peso.

Na dúvida, recolhe os olhos, aquieta a respiração, segura com a mão o coração; molhe os lábios com a língua - certamente eles estão secos, um pouco rachados - talvez mordidos pelos dentes que não cessam de tremer.

Outrora fui abraçado pelo vento, ele nada disse, nem a sua respiração eu ouvia, apenas sentia os seus braços aconchegar o meu corpo. O vento não tinha cor, porém tinha cheiro de orvalho no início, depois de morangos, amoras, e quase no final de limão.

Eu poderia começar tocando o céu. Logo em seguida, recolher os grãos de areia das praias. Durante esse recolhimento me encontraria com o mar, me deixaria atravessar por ele, invadido ser por suas forças, pela maciez de suas águas; e por seu cheiro de sal. Nessa invasão, o mar me carregaria pra junto de si; de modo paulatino me levaria, me envolveria num fluxo interminável.

Me encontro submerso no mar, os peixes cruzam-me, beijam-me - alimentam-se das minhas feridas - vão me despedaçando aos poucos. Meu corpo vai entrando num processo de decomposição, as veias rompem, o sangue deságua, atrai os grandes peixes; os quais se achegam pelo cheiro, pela percepção da cor: nuance avermelhada que toma todo o mar. A morte não permeia esse lugar, não se trata disso.

A alma continua plena, sóbria, o corpo todavia se inebria pela invasão das águas, pelo o beijar dos peixes que se alimentam em cada toque dos seus lábios junto a minha pele - me amam no mesmo tempo no qual me devoram.

Não sei como lidar muito bem com o tempo no qual existo. Ele me move com uma velocidade nunca experienciada por mim. Tenho dentro e fora do corpo, se é que ele se constitui desses diferentes espaços, uma miríade de pequenas chaves de prata. Não sei ao certo o que fazer com as tais. Por hora elas me compõem.

Em distintos momentos desejo a morte. Acredito que ela pode ser sossegada e doce. Doce é o mel das abelhas que sobrevoam um denso jardim sem pergunta, sem dúvida, sem medo. Tenho medo de cair e não conseguir mais levantar – escrevo do chão.

Não sei mais o gosto de uma lágrima. Sobretudo as que escorrem dos olhos, do mesmo modo que a chuva desliza do céu de madrugada quando todos silenciam. O silêncio tem se tornado a minha utopia.
Sinto o corpo repleto de gavetas, chaves e cadeados.

Sinto o tempo, o atual, cegando-me, embaçando o meu campo de visão. O amor parece gotejar um líquido avermelhado e consistente que desliza sobre o chão. Há desperdício de amor? Talvez haja escassez de recipientes vazios que possam receber suas gotas. Estão todos lotados de coisas, entulhos, desejos confusos.

Por vezes me perco no que invento. Muitos dizem que não é real. Todavia o real é somente aquilo que escolhemos acreditar. Acredito em beija-flores que recitam poesias como canções e as entornam ao vento. Como se elas fossem pó de estrelas de um céu noturno.

Estou debruçado sobre o céu: colho estrelas. Empenho-me em construir minha própria constelação de micro feixes de luz.

O vento toma nos seus braços a leve folha esverdeada outrora desprendida da árvore ressequida.

Beijar a flor, sentir seu néctar: líquido açucarado. Tocar a madeira, perceber sua rusticidade e a macieis de suas farpas. A pele arrepia pela fala do vento: o vento fala, canta; as vezes grita. A voz do corpo se cala: o corpo tem voz, tem cheiro, tem feridas que cheiram mal; tem medo, tem paixões. O corpo tudo tem, tem até o seu próprio tempo. O tempo do corpo chega ao fim. A flor murcha sem seus beijos, sem seu hálito: ar, brisa que sai dos pulmões durante a expiração; exalação, emanação; cheiro da boca. O vento não mais grita, nem sopra; apenas se agita.

Deita-se sobre a noite, aconchega-se na negritude; inala o eflúvio das estrelas. Sem urgência elas riscam o céu, o deixa riscado de luz.

A inquietude foi embora, partiu; sem dizer adeus deixou o coração. A alma respira, suspira, transpira. O amor não está no peito alçou voo - o vento levou - o largou solto no ar a amar a ventania. Quieto o dia está. A mão no rosto desliza, alisa, retira a poeira descansada. Nada diz o céu. Tenho esperança nas águas, aquelas que correm, me alcançam e me levam sem nada de mim deixar.

[...] é como se as borboletas estivessem todas, produzindo um vendaval: no interior daquele que nega o desejo.

Desejo cantar nos teus ouvidos a canção produzida pelos pássaros matinais. Desejo falecer nos teus braços olhando-te profundamente nos olhos até minha alma ser arrancada de junto de ti. Invadir o teu corpo é o meu desejo último, assim como a faca rasga as vísceras de um corpo.

O corpo grita no silêncio da voz.

A cor indefinível do mar carrega a alma do pássaro esverdeado.

[...] Seja arrancado tudo o que causa peso; sejam os órgãos, os ossos, os músculos... Seja o sangue. Não quero estar vazio, mas leve. Seja retirado tudo, para doravante eu enfim flutuar. Quero estar leve e não vazio inversamente digo. Quero gritar mais alto no tempo certo do grito. Quero mover com mais leveza, sem nada que possibilite peso. Quero mover no ar se possível for. A remoção do que me causa peso se dá com esmero. Flutuo sobre os horizontes, vejo os lagos, beijo o vento. Sonho os sonhos de um pássaro. Sonho a liberdade de sonhar livre, sem obstáculos, sem peso algum, sem nada que me empeça de ir mais alto e alto sem voltar atrás - Não morrerei enquanto não experienciar o flutuar. Não partirei enquanto não me torna um ser flutuoso.

[...] Querem ser autônomos os olhos e não determinados no que diz respeito ao enxergar. O que sabe o homem para ensinar os olhos? Nada sabe! O que sabe se desabe, o vento leva; assim como ele que semelhante é a uma folha que seca e logo se desfaz no tempo. Os olhos querem voar e contemplar talvez o mar, fixar sua visão ali nas ondas que estão a dançar a música do mar. Os olhos precisam ver outros olhos como os seus, desvinculados dos homens, donos de si. A noite passa, os olhos fecham e por um instante se calam.

No dia último as lembranças repousam, no silêncio, declamam as alegrias tristes de um tempo perdido no bolso da calça do corpo.