Saulo Nascimentto

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⁠Fragmento V - Cogitativo autotélico

E, nesse ponto,
a impressão do entendimento de origem
instila a ideia de que
a manifestação da intenção intuitiva,
bem como a dedução de uma causa observável
— baseada na simultaneidade da experiência,
predicado tanto do conhecer quanto do não conhecer —
libram arquétipos prematuros
que paliam razão inadequada.

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⁠Nella città II - Meu véu

Todos dizem ter a verdade, como se fosse um objeto que se guarda no bolso, ou algo a ser fatiado, repartido em porções individuais: este pedaço é meu, aquele é seu. Mas a verdade... a verdade não se deixa possuir. Ela apenas é. Está lá — livre e inteira — mesmo quando ninguém a vê.
Eu a sinto, às vezes, num instante que passa, incapturável pela compreensão. Ela não se deixa ressignificar. Não cabe em palavras, não se curva à vontade alheia. É. Como a luz que atravessa uma janela, mesmo quando o vidro está empoeirado. O que vejo... é sempre manchado pelo que sou.
Mas o erro — o erro é pensar que a verdade é minha só porque a vi. Não é. Ela não é minha, não é tua, não é de ninguém. É só dela. Minha é a percepção. E percebo com mãos trêmulas, com olhos que mentem, com o silêncio do que ainda não entendi.

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⁠Identidade

O homem, por mais que se erga sobre inúmeras sobreposições, não se afasta de si mesmo, pois é projeção de sua própria essência. Com respeito às sobreposições, não são estas desvios de quem ele realmente é, mas sim manifestações da mesma identidade, como reflexos de uma virtude essencial que se desdobra de diferentes formas sem perder-se.

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Nella città VI - Self fragmentado

E, quando o de dentro se partiu, espelhou-se na cidade: fachadas, vitrines e poeira.

Tremem, trôpegos, nauseantes;
não sei se vivos ou passantes,
se carne ou bruma a desfilar...
certos rostos à deriva,
cada qual no não-lugar.

Inserida por CatarinaL

⁠Essência

Por mais que o homem se eleve em camadas,
Feito torre de espelhos e véus,
Não foge de si — alma lançada
À luz de seus próprios céus.
Não há máscara que o oculte inteiro,
Nem desvio que o desfaça.
Cada gesto, erro ou esteio
É a essência que se disfarça.
O que muda é só o contorno,
A forma, o nome, o tom do dia;
Mas dentro, pulsa o mesmo sopro,
A mesma chama, a mesma via.

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⁠X

Sou sonho de barro, disfarce,
a perder-se no traço sem forma.
Luz que não turva à sombra,
abismo, sem trono — aurora.

Lavei as mãos num rio sem nascente;
a cruz não pesa quando feita de névoa.
Não há dor na carne que aceita,
nem medo onde o fogo se entrega.

No coração do fogo não há queima,
tampouco centelha a aviltar.
Quem nada reteve, acendeu o ouro,
não fogo em palha a brasar.

Vejo a prata nascer da cinza imóvel,
fênix que arde num voo sem cruz,
sem dor, sem retorno nem em vão.
É fogo ou ouro ou luz?

Inserida por CatarinaL

⁠II

E se da alma o sopro se adianta...
Se é dor, não sei; se é graça, não declaro:
verte-se o vinho em ânforas de ausência,
sem taça, sem altar, sem penitência,
qual pranto que precede o verbo calado.

Inserida por CatarinaL

⁠Alfétena III - Escamas

Em tristes olhos, baços do sofrer,
que o tempo enroupa de névoa...
Chorais memórias, tênues, dolentes,
tal poente silente rendido ao anoitecer.

Inserida por CatarinaL

⁠Alfétena II - Sonhos

É da sina de todo ser vivo desejar aquilo que está fora da sua realidade, ainda que tal desejo seja, literalmente, estar fora dela.
Digo isso porque acredito que todo sonho carrega em si sua própria condição de realidade, e é a realidade que sublinha de vida tudo o que existe.

Inserida por CatarinaL

⁠Nella città IV - Substância

O que em mim permanece silencioso
é também o que, em mim, permanece vivo...

É o que não foi capturado,
nem domesticado pelo hábito,
muito menos reduzido
à conveniência do sentido.

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III - Caso pergunte

⁠Perguntei, contudo, resposta alguma obtive, exceto do silêncio, antes, o barulho. Esquadrinhei a fundo, porém o chão ainda estava aos pés.

Já não é do tempo o remorso, nem da fagulha, o fogo.
Não é lenha que esbraseia, nem pó que cinzenta a lassidão.
Não é ferro que ferruja ao ato, nem cinzel que fumega coisa fugidia.
Antes que percebas, devota-te em ser; pois o homem,
o homem faz perguntas que não quer saber.

Inserida por CatarinaL

⁠Liberdade é Desobediência

Vivemos sob a ilusão da liberdade, como se o livre-arbítrio fosse um dom absoluto e não uma condição imposta pela percepção. O mundo se constrói sobre dicotomias: real e percepção, relativo e absoluto; mas nós, em nossa finitude, ainda não aprendemos a lidar com isso.
A verdade, tal como é, é que não somos livres. Nunca fomos. Deus não nos fez para a liberdade, mas para o pertencimento, a obediência e a servidão. A liberdade, se fosse real, seria plena; e, sendo plena, não poderia coexistir com leis, normas ou limites. Onde há regra, não há liberdade; onde há ordem, há sujeição.
A própria escritura nos inicia nesta consciência com a simplicidade terrível de Gênesis 2:

"E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim comerás livremente; mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás."

Aqui se revela o primeiro paradoxo: a permissão ampla precedida de uma interdição absoluta. E, novamente, não há liberdade onde há interdição. O verbo “ordenou” ecoa como revelação da condição humana. O homem é posto no Éden para lavrar e guardar, não para escolher o que é ou para não ser. Sua função é ação sob comando, e não criação de destino.

O engano nasce com a serpente, mas floresce na consciência humana...

" [...] se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal."

Até então, vivíamos numa percepção de liberdade, pois não havia transgressão. Não éramos livres, mas tampouco sabíamos que não éramos. Com a queda, descobrimos a medida da nossa servidão. O bem e o mal, antes indistintos, tornam-se fronteiras visíveis, e com elas nascem o medo, o pudor, a culpa e o peso da escolha.
Não se trata de uma questão de estado de ser, mas sim de percepção. Só quem se percebe servo pode ser tentado a ser livre. Quem acredita ser livre passou da percepção ao estado de consciência inerte, desapropriada da realidade, e também da percepção.
Para Deus, talvez, bem e mal sejam a mesma coisa — expressão de Sua vontade e de Sua justiça. Mas, para nós, homens, feitos carne a partir da poeira, são abismos distintos, assim como percepção e realidade. Não sabemos lidar com isso, porque fomos feitos para obedecer, e não para compreender o abismo.

Inserida por CatarinaL

⁠⁠Nebulocoginição

Que vejo eu, se ver é só ideia vã,
Reflexo vão da mente, sombra escura?
Se tudo quanto é mundo se me espelha,
Será o mundo real? Ou só figura?

Quem me afirma que há pedra, céu e chão,
Se tudo é sonho feito em consciência?
Talvez o Sol se apague ao meu fechar,
E Deus, talvez, em mim só tenha essência.

De que me serve a carne e seu quebranto,
Se não sei se é de mim, ou de um invento?
Pois posso ser apenas leve encanto,
Imagem ou curto pensamento.

Inserida por CatarinaL

Fragmento IX - Livre-arbítrio

Que livre sou, me diz minha vaidade, contudo, nasci preso ao vício e à corrente, que me impôs o meu Pai, a minha Mãe e essa serpente. Estou a contorcer-me com isso, como quem no ventre é enlaçado pelo cordão que o alimenta.

Se penso, é pensamento de herança; se creio, é fé que veio por deveras, porque, até onde sei, fui criado em fórmulas austeras de um mundo partido por falsa percepção.
Dizei-me vós, ó sábios de batina: sou livre, ou apenas um desobediente?

Inserida por CatarinaL

⁠Nella città III - A cor da carne

Há dores que nascem antes do grito.
Não do corpo, oráculo por vezes calado,
nem da alma, que cedo se curva ao pranto.
Mas da identidade, lançada à sombra, à face do repúdio,
antes mesmo de saber-se ser.

Nasce, então, a dor sem nome,
antes que a luz do mundo pudesse tocar a pele — nua.
É o peso de um tom que destoa,
aviltado pela violência do olhar.
A cor da carne, que não é da alma,
não é identidade,
mas adorno passageiro —
incompreendido por olhos de cárcere,
que desferem o açoite mudo da ignorância,
a face vertida.

Vê:
a cor sublinha o corpo,
e não pede perdão pelo que é.
Aqueles que esperam que a cor se renda
não entendem o enigma da pele — nua,
que nenhuma voz pode enunciar.

Inserida por CatarinaL

⁠Nella città V - Vestal

Ergui-me entre autos, decretos e selos,
um número, um nome à pena do Estado.
Eis-me: carne julgada em papel amarelo,
alvura que a ferrugem envelhece.

Mas tu, que és fogo, sê chama sem dono,
não te prostres à mão que molda o aço.
Pois só no caos é que o homem tem sono,
sonhos, alma e pés.

Inserida por CatarinaL

⁠Ruptura I

Quebre o espelho; danem-se os reflexos. Despeje o chumbo, abrase a prata.
Que o fogo negro da revolta incendeie e, do lodo, renasça brutal e voraz.

Inserida por CatarinaL