Pedro Rodrigues de Menezes

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⁠verme alado


as galáxias
é sempre
as galáxias
da infinita luz bruta
que todo eu em bruto
porventura em vão
espero um dia alcançar
apesar da fome
e da solidão
e da força
dos meus braços
tão livres
dos meus lábios
tão mudos
dos meus olhos
tão cerrados
um verme
rastejando nu
de asas
contemplando
para além da terra
e da memória sideral
a dormência do sono
a vibração do sonho.


(Pedro Rodrigues de Menezes, “verme alado”)

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⁠a luz que te foge
dentro do corpo
é uma lâmina doce
na amargura do tempo
indelével, cristalizado
o universo inteiro
contido no fogo
das saudades
da loucura
faltam-me as tuas mãos
e os teus olhos infindáveis
na cegueira pura das galáxias
com que sempre me abraças
esposa, irmã, amiga
tudo o que vem depois de ti
é um chicote ardiloso
sobre o meu corpo escuro
antes abraçado
agora esquecido
na violenta ausência de ti.

Poema dedicado a Sheila Camoesas

Pedro Rodrigues de Menezes, "na violenta ausência de ti"

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⁠vodu

por entre os dedos da terra
sem pressa
sem deter
discorre sem forma
e incolor
o deus terrível
profundo
silêncio cálido
que inebria e incapacita
que engole
sem mastigar
os ásperos calos
deformando
as minhas trémulas e gélidas formas
encerrando os olhos
com o capim
e as pedras
e as folhas tardias
do longo inverno
na caverna aberta deste crânio quartzítico
incandescente luz que me atravessa
imobilizado pelas asas abismais
ouço e vejo o temporal
contra a gruta do meu próprio templo
eu sou o templo e a sua ruína
os seus antepassados futuros
isto é o princípio do meu renascimento
e por isso estou estendido nesta catarse
envolvido pelo frondoso sudário da floresta
aguardo a tácita palidez da minha própria morte
talvez eu próprio seja este terrível deus
porque ouço a voz da lua e o corpo do sol
invocando em extintas línguas os meus nomes.

(Pedro Rodrigues de Menezes, “vodu”)

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baobá

procuro nos outonais trâmites do teu corpo
o insofismável vestígio das tuas raízes
salgueiro que jaz e se curva obliquamente
eterna a bênção, terrível o fim do tempo
deserto, areia, sol, miragem, saudade
serás sempre o antes e o depois de nós
e nós seremos tão pouco e tão poucos
depois de ti secarão todas as welwitschias
África não renascerá da força dos tambores
mil homens sangrarão entre solenes rituais
as grávidas abortarão com sede de terra
e o céu encher-se-á de conchas e espinhas
e virão os deuses deste mundo e do outro
velar a desgraça efémera da sabedoria
ninguém saberá mais falar, escrever ou viver.

Poema dedicado a Catarina Pereira do Nascimento

(Pedro Rodrigues de Menezes, “baobá”)

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⁠não enterrarei as minhas mãos
não enterrarei
as minhas mãos
por não caberem
na terra dos outros.

(Pedro Rodrigues de Menezes, "não enterrarei as minhas mãos")

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⁠malmequer negro
percorro pulsante o corredor
de pés mudos como muros
ergo o intransponível crânio
nascendo e dormindo prescrito
adio a translúcida sibilância
malmequer fulgente e negro
que levo ao peito como um sabre
recito pelo adejar rítmico dos lábios
salmos rituais ossos barro pó
fulgurante translação das veias
arde-me o míope sangue vertical
escorrendo pelo lantânio e lutécio
hei-de criar pedra sobre pedra
farei da luz dois vítreos ciclopes
pousarei nos pilares de hércules
a incorpórea maldição dos deuses
e levitando andarão as testas
dos homens e deuses
dos deuses homens
sit tibi terra levis[1]
requievit in pace.[2]

[1] que a terra te seja leve
[2] descansa em paz

(Pedro Rodrigues de Menezes, "malmequer negro")

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Requiem for Adílio Lopes

⁠Adília e Adílio, ambos Lopes



oferecer-te um poema
em forma de livro
de receitas
cozer-te pão
para o coração
há tanta falta de pão
para o coração.

(Pedro Rodrigues de Menezes, Adílio Lopes XV)


Adília
e
Adílio
comem
pão
de ló
pelos pés
Lopes.

(Pedro Rodrigues de Menezes, Adílio Lopes, XVI)


imagino-te
como vieste
ao mundo
de pano do pó
na mão
e sem mais nada
por cima
por baixo
mas cheia
de coração.

(Pedro Rodrigues de Menezes, Adílio Lopes, XVII)


Herberto Helder
convida
Adília Lopes
para jantar
duas solidões
uma doméstica
não domesticada
outro uma artéria
sem pressão arterial
ponto de interrupção.

(Pedro Rodrigues de Menezes, Adílio Lopes, XVIII)


o teu cabelo
Adília
o teu cabelo
Adília
é uma rosa
de ventos
ventania
poesia.

(Pedro Rodrigues de Menezes, Adílio Lopes XIX)


os capítulos
capitulam
esta história
no fim triste
cumpriu o destino
de Adílio Lopes
morreu nos braços
de Adília Lopes
no dia em que se conheceram
consta que morreram
Adílio Lopes
os gatos
e só sobreviveu
Adília Lopes
e as suas baratas
mas sobre os gatos
assassinos
que esgatanharam
(não confundir com esgadanhar)
o corpo de Adílio Lopes
ninguém escreveu.

(Pedro Rodrigues de Menezes, Adílio Lopes, XX)


Nota: termina a história de Adília e Adílio, ambos Lopes.

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