Ana Jacomo
Tem dor que vira companhia. Olhando de perto, faz tempo que deixou de doer, só tem fama, mas a gente não solta. Quem sabe, pelo receio de não saber o que fazer com o espaço, às vezes grande, que ficará desocupado se ela sair de cena. Vazio é também terreno fértil para novos florescimentos, mas costuma causar um medo inacreditável.
Quando, finalmente, criou coragem e deixou de dar casa, comida e roupa lavada para a tal dor, ela desapareceu.
O melhor do abraço é o charme de fazer com que a eternidade caiba em segundos. A mágica de possibilitar que duas pessoas visitem o céu no mesmo instante.
Mente é casa que não tem paredes, mas nos acostumamos a viver como se tivesse. E, não é raro, passamos temporadas no cômodo mais apertado.
Plenitude é quando a vida cabe no instante presente, sem aperto, e a gente desfruta o conforto de não sentir falta de nada.
Mas não tenho mais tanta pressa. Comecei a aprender a ser mais gentil com o meu passo. Afinal, não há lugar algum para chegar além de mim. Eu sou a viajante e a viagem.
Perseverança
Jogo a minha rede no mar da vida e às vezes, quando a recolho, descubro que ela retorna vazia. Não há como não me entristecer e não há como desistir. Deixo a lágrima correr, vinda das ondas que me renovam, por dentro, em silêncio: dor que não verte, envenena. O coração marejado, arrumo, como posso, os meus sentimentos. Passo a limpo os meus sonhos. Ajeito, da melhor forma que sei, a força que me move. Guardo a minha rede e deixo o dia dormir.
Com toda a tristeza pelas redes que voltam vazias, sou corajosa o bastante para não me acostumar com essa ideia. Se gente não fosse feita pra ser feliz, Deus não teria caprichado tanto nos detalhes. Perseverança não é somente acreditar na própria rede. Perseverança é não deixar de crer na capacidade de renovação das águas.
Hoje, o dia pode não ter sido bom, mas amanhã será outro mar. E eu estarei lá na beira da praia de novo.
A gente não precisa de certezas estáticas. A gente precisa é aprender a manha de saber se reinventar. De se tornar manhã novíssima depois de cada longa noite escura. A gente precisa é saber criar espaço, não importa o tamanho dos apertos.
A alma é sábia: enquanto achamos que só existe dor, ela trabalha, em silêncio, para tecer o momento novo. E ele chega.
Não quero olhar para trás, lá na frente, e descobrir quilômetros de terreno baldio
que eu não soube cultivar. Calhamaços de páginas em branco à espera de uma história que se parecesse comigo. Não quero perceber que, embora desejasse grande, amei pequeno.
Não é raro, tropeço e caio. Às vezes, tombo feio de ralar o coração todinho. Claro que dói, mas tem uma coisa: a minha fé continua em pé.
Me recordo de cada flor que veio à tona só porque tive coragem de cuidar da semente. Só porque não me acovardei, mesmo que tantas vezes com todo medo do mundo.
Todo encontro que verdadeiramente nos toca é uma espécie de milagre num mundo de bilhões de seres humanos. Algumas pessoas a gente nem imaginava que existiam, mas, meu Deus, que agrado bom é para a alma descobrir que vivem. Que estão por aqui conosco. Pessoas que fazem muita diferença na nossa jornada, com as quais trocamos figurinhas raras para o nosso álbum.
Almas Perfumadas
Tem gente que tem cheiro de passarinho quando canta.
De sol quando acorda.
De flor quando ri.
Ao lado delas, a gente se sente no balanço de uma rede que dança gostoso numa tarde grande, sem relógio e sem agenda.
Ao lado delas, a gente se sente comendo pipoca na praça, melando os dedos com algodão-doce da cor mais doce que tem pra escolher.
O tempo é outro e a vida fica com a cara que ela tem de verdade, mas que a gente desaprende de ver.
Tem gente que tem cheiro de banho de mar quando a água é quente e o céu é azul.
Ao lado delas, a gente se sente chegando em casa e trocando o salto pelo chinelo.
Ao lado delas, pode ser abril, mas parece manhã de Natal do tempo em que a gente acordava e encontrava o presente do Papai Noel.
Ao lado delas, a gente não acha que o amor é possível, a gente tem certeza.
Tem gente que tem cheiro de cafuné sem pressa.
Do brinquedo que a gente não largava.
De passeio no jardim.
Ao lado delas, a gente percebe que a sensualidade é um perfume que vem de dentro e que a atração que realmente nos move não passa só pelo corpo.
Corre em outras veias.
Pulsa em outro lugar.
Nota: Trecho de um texto de Ana Jácomo.
Ouça com o coração quando quase lhe parecer silêncio: é o meu amor falando baixinho só pra não acordar o seu medo de amar.