Trechos Clarice Lispector
Há impossibilidade de ser além do que se é – no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio, sou mais do que eu quase normalmente –; tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo. (...)
A única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais...
Vivo no quase, no nunca e no sempre. Quase, quase – e por um triz escapo.
Fico às vezes reduzida ao essencial, quer dizer, só meu coração bate.
Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.
Aceitar-me plenamente? É uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda minha palavra tem um coração onde circula sangue.
Passei a minha vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente.
Amor é quando é concedido participar um pouco mais.
Amor é a grande desilusão de tudo mais.
Amor é finalmente a pobreza.
Amor é não ter.
Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor.
E não é prêmio, por isso não envaidece.
Nota: Adaptação de trecho da crônica Atualidade do ovo e da galinha (II).
Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É dificílimo contar: nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses momentos são o meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isso de: estado agudo de felicidade.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.
E eis que depois de uma tarde de “quem sou eu” e de acordar à uma hora da madrugada ainda em desespero – eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. e você é você. É vasto, vai durar.
O que te escrevo é um “isto”. Não vai parar: continua.
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.
E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam.
Mas o vazio tem o valor e a semelhança do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é a resposta a meu – a meu mistério.
Detesto coisas mais ou menos, não sei amar mais ou menos, não me entrego de forma mais ou menos.
Quando você diz “Eu te amo”, está fazendo uma promessa com o coração de alguém. Tente honrá-lo.
Simplesmente eu sou eu. e você é você. É vasto, vai durar. (...) Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.
Estou em plena luta (...) Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não termos um ao outro (...) Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. (...)
Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz (...)
Mas eu escapei disso, Lóri, escapei com a ferocidade com que se escapa da peste, Lóri, e esperarei até você também estar mais pronta.
Acho que sábado é a rosa da semana.
Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.