Trechos Clarice Lispector
Se tudo isso existe, então sou eu. mas por que esse mal-estar? É porque não estou vivendo do único medo que se existe para cada um de se viver e nem sei qual é. Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há. Mas alguma coisa está errada e dá mal-estar. No entanto estou sendo franca e meu jogo é limpo. Abro o jogo. Só não conto os fatos de minha vida: sou secreta por natureza. O que há então? Só sei que não quero a impostura. Recuso-me. Eu me aprofundei mas não acredito em mim porque meu pensamento é inventado.
Levo uma vida diária vazia e agitada. Passo o tempo todo pensando – não raciocinando, não meditando mas pensando, pensando sem parar. E aprendendo, não sei o quê, mas aprendendo. E com a alma mais sossegada (não estou totalmente certa). Sempre quis “jogar alto”, mas parece que estou aprendendo que o jogo alto está numa vida diária pequena, em que uma pessoa se arrisca muito mais profundamente, com ameaças maiores. Com tudo isso, parece que estou perdendo um sentimento de grandeza que não veio nunca de livros nem de influência de pessoas, uma coisa muito minha e que desde pequena deu a tudo, aos meus olhos, uma verdade que não vejo mais com tanta frequência. Disso tudo, restam nervos muito sensíveis e uma predisposição séria para ficar calada. Mas aceito tanto agora. Nem sempre pacificamente, mas a atitude é de aceitar.
Mas era como uma pessoa que, tendo nascido cega e não tendo ninguém a seu lado que tivesse tido visão, essa pessoa não pudesse sequer formular uma pergunta sobre a visão: ela não saberia que existia ver. Mas, como na verdade existia a visão, mesmo que essa pessoa em si mesma não a soubesse e nem tivesse ouvido falar, essa pessoa estaria parada, inquieta, atenta, sem saber perguntar sobre o que não sabia que existe – ela sentiria falta do que deveria ser seu.
Com exceção de uns poucos, todos têm medo de mim como se eu mordesse.
E eis que de repente agora mesmo vi que não sou pura.
É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é.
Por que quero fazer de mim um herói? Eu na verdade sou anti-heroica. O que me atormenta é que tudo é "por enquanto", nada é "sempre".
Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final.
E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma explicação.
Passo o tempo todo pensando – não raciocinando, não meditando mas pensando, pensando sem parar. E aprendendo, não sei o quê, mas aprendendo.
Para não se traírem eles ignoravam que hoje era ontem e haveria amanhã.
E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.
A possíveis leitores
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.
Tudo tem que ser bem de leve para
eu não me assustar e não assustar os
que amo.
Pedem-me pouco, pedem-me quase nada.
O terrível é que eu tenho muito para dar
e tenho que engolir esse muito e ainda
por cima dizer com delicadeza: obrigada
por receberem de mim um pouquinho de mim.
Tudo o que mais valia exatamente ela não podia contar. Só falava tolices com as pessoas.
Carnaval era meu, meu. No entanto, na realidade, eu dele pouco participava.
Nota: Trecho do conto Restos do Carnaval.
...MaisTudo o que não sou não pode me interessar, há impossibilidade de ser além do que se é.
Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és.
E coca-cola. Como disse Cláudio Brito, tenho mania de coca-cola e de café. Meu cachorro está coçando a orelha e com tanto gosto que chega a gemer. Sou mãe dele. E preciso de dinheiro. Mas que o "Danúbio Azul" é lindo, é mesmo.
Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.