Textos de Caio Fernando Abreu
Dessa vez não vou querer tudo de uma vez, porque sempre acabo ficando sem nada no final. Estou apostando minhas fichas em você e saiba que eu não sou de fazer isso. Mas estou neste momento frágil que não quer acabar. Fiquei menos cafajeste, menos racional, menos eu. E estou aproveitando pra tentar levar algo adiante. Relacionamentos que não saem da primeira página já me esgotaram, decorei o prólogo e estou pronto pro primeiro capítulo.
Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias.
Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos, e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis.
De vez em quando choro. É bom chorar. Eu não tenho vergonha, mas em todos os momentos existe a certeza de ter feito uma escolha acertada, de estar caminhando em direção à luz. Não nego nada do que fiz, também não tenho arrependimentos ou mágoas: eu não poderia ter agido de outra maneira — mesmo em relação a você — levando em conta o quanto eu estava confuso naquela época. Também já não tenho aquelas queixas infantis, na base do ‘tudo dá errado pra mim’, ou autopunições como ‘eu sou uma besta, faço tudo errado’. Nada é errado, quando o erro faz parte de uma procura ou de um processo de conhecimento. Gosto de olhar as pedras e os desenhos do vento na superfície da água, gosto de sentir as modificações da luz quando o sol está desaparecendo do outro lado do rio, gosto de sentir o dia se transformando em noite e em dia outra vez, gosto de olhar as crianças brincando no corredor de entrada e das palmeiras que existem no meio da minha rua — gosto de pensar que vou sempre ter olhos para gostar dessas coisas, e por mais sozinho ou triste que eu esteja vou ter sempre esse olhar sobre as coisas. Não sei muito, também não tenho muito, também não quero muito, mas estou aprendendo a respirar o ar das montanhas.
Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio...
Não sinto mais impulsos amorosos. Posso sentir impulsos afetivos, ou eróticos - mas amorosos, sinceramente, há muito tempo. É estranho, e não me parece falso, mas ao contrário: normal. Era assim que deveria ter sido desde sempre. E não se trata de evitar a dor, é que esse tipo de dor é inútil, é burro, é apego à matéria. Sei lá. E não sei se me explico bem."
O tempo passou. No meio da festa, outro dia, eu olhei para o sujeito e percebi que não sentia mais nada em relação a tudo aquilo. Parecia tão importante na época, parecia insuperável, mas acabou, ficou para trás, não deixou rastros. A vida andou, como a vida costuma fazer - desde que a gente não se agarre às memórias com as duas mãos, desde que a gente não fique refém da traição e da culpa.
Sei que a maioria das pessoas me diz: “menina, abre teu coração mais uma vez e segue em frente, não para de sonhar, um dia isso tudo passa.” Mas esse discurso, que já ouvi algumas vezes, não me convence e nem atinge quando o tema é você e todas as sensações e mudanças que você causou em mim.
Compreendo tudo que você diz. São coisas que me digo, também. Mas há uma diferença entre você saber intelectualmente da inutilidade das procuras, da insaciabilidade — vixe, que palavra! — do corpo e conseguir passar isso para o seu comportamento — tomar ato o que é pensamento abstrato. Os caminhos são individuais/intransferíveis.
E tem gente maravilhosa que, de repente, vai ficando longe, difícil de ver – e aí dança. Mas também acho que aquilo que é bom, e de verdade, e forte, e importante – coisa ou pessoa – na sua vida, isso não se perde. E aí lembro de Guimarães Rosa, quando dizia que “o que tem de ser, tem muita força.
...é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem...
Está chovendo. Pela janela posso ver, lá embaixo, as pessoas correndo, de capas e guarda-chuvas. As árvores do parque estão todas molhadas , mais verdes. Engraçado, não gosto do meu quarto – das paredes, dos móveis – , mas gosto demais das coisas que posso ver pela minha janela. Das coisas que estão fora dele, porque o que está aqui dentro eu acho muito parecido comigo. E eu não gosto de mim. Ou gosto? não sei. Talvez pareça não gostar justamente porque gosto muito, então exijo demais do meu corpo, e as coisas erradas que ele faz – são tantas! – me fazem detestá-lo. A gente sempre exige mais das pessoas e das coisas que quer bem, as que queremos mal ou simplesmente não queremos nos são indiferentes.
Claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta ácidos, fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? (...) Perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário & positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária e bababá bababá.
Seria isso, então? Você só consegue dar quando não é solicitado, e quando pedem algo você foge em desespero. Como se tivesse medo de ficar mais pobre, medo de que se alcance seu centro e nesse centro exista alguma coisa que você não quer mostrar nem dar ou dividir. Contido, dissimulado, você esconde essa coisa, será assim?
Ela parecia inteira. Inteira porque não tinha ficado nada dela para trás. Seus olhos eram de desilusão, de cansaço. Cansada de construir sonhos, planos, fantasias. E depois da desilusão ter de destruir uma a uma, como se nada daquilo tivesse um dia existido, só para olhar para trás e não sentir nada do que sentira antes. Era mais um fim doído, choroso, arrastado. Fosse o ponto final sua última lágrima de dor, já havia então sido decretado. Decretado num discurso mudo, num adeus em silêncio. Dito através de tudo daquilo que não havia sido falado.
Era sábado à noite, quase verão, pela cidade havia tantos shows e peças teatrais e bares repletos e festas e pré-estreias em sessões de meia-noite e gente se encontrando e motos correndo. É tão difícil renunciar a tudo isso para permanecer no apartamento lendo, espiando pela janela a alegria alheia.
Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.
Sou apaixonado por abraços. Não resisto a segurança de abraços fortes, sinceros que me envolvem e sinto como se um choque de esperança me fizesse ver as coisas de outra maneira. Então, poupe-se de procurar palavras pra me agradar, de algo que me faça sorrir e me sentir melhor... Apenas me abrace, e me segure bem forte.
Hoje aconteceu uma coisa engraçada, que atestou mais uma vez a minha incoerência comigo mesmo. Vivo imaginando que de repente vão aparecer fadas ou gênios na minha frente para perguntar o que eu desejo. Hoje pensei sério: se me perguntassem o que mais desejo na vida, não saberia responder. Quero tudo.
Cartas, santos, números, astros: eu queria afastar completamente todas essas coisas da minha vida. Queria o real, um real sem nada por trás além dele mesmo. Apenas mais fundo, mais indisfarçável, sem nenhum sentido outro que não aquele que pudesse ver, tocar e cheirar como os cheiros, mesmo nauseantes, mas verdadeiros, dos corredores do edifício. Eu estava farto do invisível.